quarta-feira, 22 de junho de 2011

A propósito da jurisdição afetiva: vamos todos cirandar?

Recentemente o Supremo Tribunal Federal acatou a tese vertida por interessados, incluída aí a Procuradoria Geral da República, no sentido de reputar constitucional a chamada união estável homoafetiva. O fato foi comemorado por casais homosexuais que, não sem razão, passaram a gozar profundamente da segurança jurídica prometida pelo texto constitucional em seu artigo 5º, fenômeno que possibilita não apenas o registro de sua situação legal em órgãos públicos, entidades de previdencia pública e privada, testamentos, provimentos judiciais, sucessões, dentre outros efeitos jurídicos presumíveis.

Sem prejuízo dos efeitos psicológicos produzidos com a publicidade do referido julgamento, dentre os quais, em algum grau, a minimização de preconceitos e, sobretudo, da ramificação de tendências homofóbicas, com algum plus de violência recôndida ou mesmo manifesta, não podemos nos furtar a analisar o episódio sob o ângulo do Estado Democrático de Direito e denunciar, desde já, que o Supremo Tribunal Federal , neste e em outros episódios, vem se locupletando ilicitamente das competências que foram deferidas ao Poder Legislativo, todavia, por vias transversas. Tentar-se-á explicar sem complicar muito.

A Constituição Federal define o conceito de entidade familiar (art. 226 e pars). Inaugurando no sistema nacional um conceito moderno de "família", reputando-a a "base da sociedade", o par. 3º do citado dispositivo esclarece que "para efeito de proteção do Estado é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar a sua conversão em casamento" (grifos nossos). Daqui se abstrai dois aspectos relevantíssimos: (i) somente homem e mulher podem constituir uniões estáveis protegidas e reconhecidas pelo Estado; (ii) a lei é exigida no sentido de facilitar a sua conversão em casamento.

O par. 4º esclarece que "entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes" (grifo nosso). Daqui se abstrai, dada a relação estabelecida entre a expressão "pais" (quaisquer deles) e "seus descendentes", posto que somente um homem e uma mulher podem gerar descendentes (expressão diferente de "filhos", que podem ser adotados), que somente a relação derivada da união entre um homem e uma mulher pode ser abrangida por esta norma. Tudo, numa interpretação sistemática, leva ao entendimento de se tratar de união entre homem e mulher.

A partir do texto constitucional, surgiram as chamadas leis do concubinato e da união estável, que se popularizaram e ganharam o que em direito se chama "eficácia social" (algo do tipo: a lei pegou)

Ao reputar a união que se passou a chamar homoafetiva, açambarcada no conceito de união estável, nos moldes definidos pelo artigo 226 e pars. do texto constitucional, o Supremo Tribunal Federal legislou instituindo uma relação jurídica inexistente no sistema legislativo pátrio. Não há qualquer norma que defina ou regule a união entre pessoas do mesmo sexo (salvo no plano do direito de se associar ou formar sociedade civil). Que norma teria sido levada ao crivo do órgão judiciário de Cúpula (eu disse Cúpula) para ter submetida a sua eficácia à luz da Constituição Federal?

Sem que qualquer norma (lei) subsidiasse o pleito vertido por meio de uma ação direta de inconstitucionalidade, o supremo julgou constitucional "algo", que inexistindo no sistema legislativo brasileiro (não há lei regulando a matéria), acabou autorizando genericamente aquilo que sequer era permitido ou proibido. A nossa Constituição assegura que "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer senão em virtude de lei" (Art. 5º, II) - grifos nossos

O STF decidiu, numa interpretação "conforme a Constituição", em caráter geral e obrigatório a todos, o que sequer foi amplamente debatido pela sociedade e transformado em algo permitido ou proibido pela via regular: a lei. O que se chamou "conforme a Constituição", em sede de interpretação, na verdade foi frontalmente contrário ao texto expresso da Constituição, vindo-se a inaugurar nova modalidade (ou critério intepretativo), qual seja, a interpretação "supraconstitucional", no sentido de.... "do jeito que eu quero que seja e pronto".

O constituinte original (aquele que desejou estabelecer uma nova ordem de valores por meio de uma assembléia constituinte), estabeleceu que os poderes da República são independentes e harmônicos (art. 2º), o que em outras palavras significa que o legislativo não pode, via de regra, julgar, e, pelo mesmo motivo, o judiciário legislar.

Ao decidir pela constitucionalidade da forma como procedeu, o órgão de cúpula - guardião da Constituição - infringiu, ao nosso ver, a Constituição. Estabeleceu efeitos genéricos aquilo que era específico, transmutando um julgamento em uma lei, sem qualquer regulamentação. Fez a vez do legislativo, o que , literalmente falando, implica em crime de responsabilidade.

A sociedade não está reticente diante do fenômeno da usurpação. A imprensa recentemente divulgou o caso de um juiz singular da 1ª Vara de Fazenda Pública de Goiania que negou o reconhecimento e registro da união estável de um casal homosexual, argumentando que a decisão do Supremo Tribunal Federal é inconstitucional. Compreenderam?: um juiz (portanto não se trata de um leigo) deixou de obedecer aos efeitos produzidos pela polêmica decisão proferida (e por unanimidade) pelo órgão judiciário de cúpula argumentando que ela, em si mesmo, é inconstitucional. Os motivos esposados pelo magistrado margeam aos que aqui postamos, relacionados com a invasão de competência do Judiciário, produzindo efeitos semelhantes à lei, num contexto onde (i) somente ao legislativo compete este mister, (ii) não havendo, até o presente momento, uma lei que regule a relação homoafetiva (para nós seria necessário - o que é mais gravoso - uma Emenda Constitucional), se quisermos dar a essa união o status de família.

A repercussão para o público em geral, ecoou como um descalabro jurisdicional eivado de preconceito, mas, se podemos ser úteis para minimizar o impacto desse desvirtuamento natural, na tentativa de aproximar o juridicamente acatado com os reflexos psicológicos provocados na massa de jurisdicionados, cumpre-nos informar que a decisão, em seu teor, em nada abordou preferências sexuais, nem a forma pela qual cópulas são empreendidas por homens ou mulheres nos seus misteres fisiológicos, filosóficos, religiosos, existenciais ou biológicos, mas tão somente a intervenção indevida do Poder Judiciário quando faz transmutar, quase que alquimicamente, uma decisão sobre algo não regulado por lei, num ato abrangente que obriga tanto a todos, como se de uma lei se tratasse (é como se de um monte de merda, através de um abracadraba jurisdicional, a fome fosse declarada extinta da realidade dos seres).

Para que se tenha noção da gravidade do problema, a via correta seria o Congresso Nacional debater amplamente o problema, e por quorum qualificado (que significa dizer na prática "através de amplo debate social" ) aprovar uma lei que, esta sim, submeter-se-ia ao crivo da análise de sua constitucionalidade pelo órgão judiciário de cúpula. No caso concreto, uma situação particular virou uma decisão em tese, que tratando de aspectos pessoais e específicos, submeteu todos os jurisdicionados ao efeito de uma decisão que repercutiu de forma geral, obrigando aos demais tribunais.

Porque duas pessoas entenderam no sentido que lhes aproveitou, toda a nação se obrigou a submeter-se aos efeitos produzidos pela polemizada atitude judicial (pois não reputo decisão o que ocorreu ali)

A questão é tão séria, que felizmente hoje recebemos um clip de notícias que informava sobre a Emenda Constitucional 33/2011, que trata de obrigar a submissão de toda súmula vinculante do STF, ou ADI'S (ações diretas de inconstitucionalidade) e ADC (ações diretas de constitucionalidade) à aprovação do Congresso Nacional. O projeto é sustentado pela tese de que o STF vem suprimindo a atividade legislativa que foi deferida exclusivamente ao Poder Legislativo, para que a sociedade, através de seus representantes legais, ratifiquem ou não as súmulas e decisões com repercussão geral, sob pena de ser discretamente implantada no país a ditadura judiciária, disfarçada de democracia judicial.

Nesse sentido, somos favoráveis à eleição direta do Presidente do Supremo Tribunal Federal (e de todos os tribunais), porque, não raras vezes, atuam mais como agentes políticos do que técnicos, mas isso é matéria para outra ocasião.

Esperando ter sido útil de alguma forma, bem como termos sido claros quanto à real problemática levantada e debatida através desse texto, vamos nos despedindo alertando para o fato de que, uma coisa é defender a liberdade sexual dos seres que delegaram ao Estado a função de representá-los, direta ou indiretamente, através de seus órgãos (sem maldades!), posto que a liberdade é o pilar central do Estado Democrático de Direito. Outra coisa, é, ao arrepio do próprio sistema democrático, impor os efeitos de uma decisão sem que sequer uma lei tenha tido seu nascedouro pelas vias e fontes institucionalmente aceitas, desrespeitando as regras do jogo, tudo para reputar ente familiar , com efeitos patrimoniais, sociais, psicológicos, institucionais, uma relação civil não abrangida no Capítulo próprio da constituição, que regula a família, com reflexos nas sucessões legítimas ou testamentárias, nas obrigações previdenciárias, fiscais e administrativas, de grande repercussão, essa sim, geral e efetiva, sem que o Congresso houvesse intervido no processo.

Durante a confecção desse artigo, tentamos, visando minorar a chatice que é apontar normas e expor aspectos técnicos necessários à compreensão do problema, encontrar uma forma de tornar divertido o texto, mas, pela primeira vez, não encontramos palavras que pudessem aliviar a tensão que leituras como esta dispertam, razão pela qual solicitamos seu perdão e compreensão.

Cuidem de analisar com prudência as notícias em que ministros de órgãos judiciários de cúpula aparecem expondo o grande problema da ineficiência do Poder Judiciário e sua relação como o excesso de recursos e manobras processuais praticadas pelos advogados. Há gente por aí pregando o enxugamento da quantidade de recursos, quando o que desejam mesmo é dar repercussão geral aos seus anseios e frustações políticas e pessoais, querendo, talvez, julgar, legislar e administrar por vias transversas. E tudo ao mesmo tempo.

Recomendo, diante da lamentável chatice desse artigo, que os leitores abortem a sua leitura, não sem antes ressaltar que esse texto não comenta uniões, de quaisquer espécies, mas usurpações e ditaduras judiciarizadas.

Vão...parem de ler essa chatice....não tem gibi em casa não!?

Ps: O Cebolinha casou-se com o Cascão, a Mônica registrou sua união estavelmente articulada com a Magali, e o Xaveco...o Xaveco....foi nomeado pelo Presidente da República Ministro do Supremo Tribunal Federal, e ambos ainda hoje brincam de roda. Ciranda cirandinha vamos todos cirandar, vamos dar a meia volta, volta e meia vamos dar. Fim!!!