segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

Do cavalo de Troia ao homem universal ou a superação do homem de Troia dos dias atuais.

     Após um intervalo considerável entre a derradeira matéria aqui escrita (31/01/2018) e a sucessão de eventos que se operou na realidade do ambiente político nacional, Genetriz Estatal retorna às suas atividades com energia renovada no sentido de contribuir com o fluxo de ideias que vagueia em rede nessa desordenada ferramenta tecnológica por onde navegam, tanto os barcos com bandeiras conhecidas, quanto navios piratas em busca do cortejo bandoleiro, do cotejo de tesouros inexistentes ou de aventuras fáceis, pois, até mesmo a liturgia poética, aquela que predizia que "navegar é preciso, viver não é preciso", transformada por Petrarca num memorial a Pompeu, foi cooptada pelo contrabando da originalidade, desmontada sem critérios, cujo objetivo maior foi, antes de tudo, promover o desmanche dos padrões de verdades históricas para fomentar o comércio de mentiras forjadas e adaptadas aos novos tempos. Quem diz isso sou eu, diz o que garante que a garantia soy yo.

     Quase quatro anos após a última publicação, registrada sob o titulo "Indagações políticas em ano eleitoral e sobre os anéis dos senhores", vim a relê-la tentando me recordar se houvera atingido o meu intento de apontar quais dos anéis e de quais senhores poderia eu estar a me referenciar quando a publiquei. Hoje, pareceu-me mais claro que o acerto, pode-se dizer, é possível de admitir. Ainda que não saiba quais dos senhores possam ter de fato sentido os efeitos do que pretendi suscitar.

     Recentemente recebi, em caráter experimental - gesto nascido de um vácuo entre um "por quê não?" meio desesperado e um "que tal aproveitar as sobras do almoço passado?" - um esboço de um livro reunindo as matérias publicadas nesse blog despretensioso, mas muito metido a besta quando a questão circunda a análise do que é, de fato, óbvio. O que é o óbvio, primeiro objeto de qualquer análise, foi antes limado aos extremos. A ideia do que é óbvio não pode ficar ao sabor dos ventos e se os ventos se alteram por fatores múltiplos, por alterações dos centros de pressão, pela dança termodinâmica sinalizada por líquidos mercuriais inseridos hermeticamente em termômetros mais ou menos fidedignos, emprestemos a cada um dos óbvios possíveis os seus respectivos nexos de causalidade. 

     O meu incentivador é meu filho, o que me fez filtrar o incentivo com o olhar de, além de pai, pessoa mais velha. Mas não é tão simples assim. Ele possui um repertório informativo invejável. É meu iniciador em teoria da informação, tem dois mestrados, dois cursos de graduação, uma daquelas pessoas com a qual posso contar antes de adquirir um livro, indagando se ele o tem ou já o leu. Mais do que isso: autonomia racional que transcende a qualquer título acadêmico que possa haver conquistado. Mas, ainda assim, menos idade e, possivelmente, menos experiência.

     Ao reler os textos, o que mais me chamou a atenção foi o grau de previsibilidade a que as reflexões conduziam. Boa parte das probabilidades com as quais brinquei de fato ocorreram e foram escritas tempos anteriores as suas respectivas e efetivas ocorrências. Agora posso me autoproclamar profeta da vida nacional, não por haver escrutinado o futuro (daquela época, que é  um dos "hojes" possíveis) inspiradas por uma divindade qualquer, mas por relevar em minhas considerações e ironias o que é óbvio. Obviamente óbvio, se é que estou em alguma medida certo do que quero dizer.

     Ontem, 08/01/2023, o país experimentou, por inusitado, a tomada da bastilha, digo, a quase tomada de Brasília. Quando pensava em dar início a um novo ciclo distante da política e da vida nacional, por amor a minha sanidade mental, vi uma tomada de cena jornalística dando conta do símbolo da república assentado sobre uma cadeira que se quis supor tratar-se da cadeira da presidente do Supremo Tribunal Federal, com uma personagem dramática a segurar sobre sua cabeça uma suposta Constituição Primeva, por igual e supostamente original. 

     O fato está sendo replicado por aí, peregrina pelas redes aos picadinhos, como um estrogonofe de realidades. Ao molho candango. As versões divergem na medida em que a mão de quem manipula o caleidoscópio rodopia a seu bel-prazer a ferramenta de ver coisas esquisitas. Uma festa de imagens disformes divertem-se a espera da expectativa alheia. Em meio ao movimento, Di Cavalcanti, furado, não chegou a sangrar, lembrando-nos dos milagres operados em terras brasileiras e cujo principal efeito é, de regra, o de alterar a história do Brasil. 

     É óbvio que esse fato histórico reverteu minha decisão de jogar a política na lata do lixo da minha história. Influenciou minha decisão de voltar a escrever na e pela Genetriz Estatal, que se referencia desde o início e em seu preâmbulo como um útero maduro aguardando pela fertilização da inteligência de toda uma nação. É óbvio que a cena de gente andando sobre os prédios da Praça dos Três Poderes não é bem uma novidade. É óbvio que domingo é dia de espasmar, como é óbvio que o palácio do planalto estava vazio. É óbvio que Lula relutou por operar sua mudança para lá, temendo escutas e outras formas de espionagem à moda tupiniquim,  e que estava em Araraquara cobrando o almoço - que nunca é grátis - do prefeito Edinho, apesar de parecer óbvio que toda a imprensa e a própria Abin informaram a quem de direito sobre o risco de invasão aos prédios públicos de Brasília, especialmente, à sede de cada um dos três poderes. Também é óbvio que Bolsonaro, o bolseiro da trama desenvolvida no senhor dos anéis, se mandou para os Estados Unidos, sendo mais ou menos óbvio que, logo após a data da desordem operada na capital, exibiu-se existente e louco para não ser esquecido, postando uma foto acamado, para mexer com a memória afetiva de seus fiéis e seguidores, e, para variar, prenunciando o acúmulo fecal de natureza intestinal, que sempre caracterizou sua atuação na presidência. As cuecas borradas, ao que posso presumir, ficaram numa das muitas lavanderias em Brasília.

     Mas se todos sabiam do risco, por que não agiram para prevenir o fato? É aqui que o contrabando de peças velhas é operado para ressuscitar modelos de veículos ultrapassados no tempo, modelos que as novas gerações sequer conheceram, quando muito, apenas ouviram deles falar alguma coisa, dentre as possíveis de dizer. É previsível o que as linhas editoriais ressaltarão a partir do evento certo e previsível - e  de fato previsto -  partindo das nuances que as diferenciaram a partir do estilo por cada qual adotado, devendo ser entendida a designação a que o conceito de "estilo" remete, não como vinculada aos padrões estéticos possíveis de inferir, mas aos patrocinadores e aos seus respectivos vínculos com o poder. 

     É óbvio que a divisão do país é um imperativo categórico nacional, nos moldes preconizados por Kant. Um imperativo categórico sustentado pela manutenção da ignorância popular e por ignorância popular enquadro aqueles que o povo escolhe para o representar, pois parece, ainda no campo do estudo da obviedade, que as limitações do povo o impedem de escolher além dos limites da sua cognição possível,  sendo também óbvio que, ao transferir votos para os seus similares, limitados que são, limitam toda a chance do país alvorecer além dessa madrugada infinita que nos assola. Distanciados em Brasília (ou nas sedes dos poderes estaduais ou municipais), aproximam-se dos verdadeiros donos do poder, estejam eles sediados ou não no território nacional, coabitando o mesmo espaço, capturado e capturador, distantes da verdadeira origem que fomenta qualquer poder político, esse que, acreditam, ainda, muitos, emanar do povo, essa substantivação unificada de uma complexa diversidade desconhecida, e, portanto, fácil de enganar. 

     A operação cavalo de Troia, conhecida no imaginário popular e que rendeu expressões populares como "presente de grego", é mais antiga que andar para frente. Espertos e espartanos, fantasiados de cavalos, ainda brincam de cavalinho em solo pátrio, presenteando ao inimigo com sua invisível presença, o que, de regra, acomete o inimigo da mesma falta de criatividade, escondendo-se uns dos outros no interior de uma dose cavalar de mediocridade política,  enquanto os mais pragmáticos lucram com os desideratos da bolsa de valores, em operações cirúrgicas que enriquecem muitos dos que agora se assentam nas cadeiras de Brasília, sem muito esforço. Cadeiras lançadas do interior dos prédios do poder em claro sinal de inconformidade, programada ou não. Os mais precários buscam lucrar e lacrar com os likes nos moldes estabelecidos pelo google AdSense, na monetarização da precariedade mental que tem feito muito sucesso nas redes.

     Mas a ignorância popular, inata, permite que a confusão se instale em sua parca capacidade discernir categorias distintas de distintos problemas, sendo facilmente convencida de que, o real problema emerge da destruição de prédios públicos, quando a destruição de prédios públicos é flagrantemente precedida da destruição das instituições que a sociedade erigiu migrando de um regime de exceção para um regime que se pretendia, além de democrático, lastreado no estado de direito.

     Não se constata outra obviedade nesse modelo senão a de que a ignorância do povo não lhe permite compreender perversões lógicas que sustentarão, amanhã, a supressão de uma garantia constitucional, espécie de regra que estabelece limitações ao poder do Estado, fenômeno que já ocorre quando expressamente uma ministra do STF reconhece, ao mesmo tempo, que a censura é absolutamente vedada, mas que relativizar sua ocorrência em circunstâncias especiais, não previstas no ordenamento fundamental, faz-se necessário. A tese é acolhida de forma arbitrária e acatada no plenário da ignorância reunida na outra ponta na linha de escolhas possíveis, promovidas por pessoas incapazes de escolher qualquer coisa que seja, que implique na afetação de esferas de interesses que extrapolem a sua própria esfera existencial. Antes da destruição dos prédios, a destruição da lógica do sistema precedeu à derrocada de todo o sistema, que já dá claros sinais de que sua ruína é iminente.

     O que importa é tornar óbvias todas as obviedades e do repertório de óbvios tão ululantes quanto de possível aferição, extrai-se o de que a população foi renegada a uma condição de mitigação de sua capacidade intelectiva a um grau que beira à irreversibilidade, condição que consolida o estado de inferioridade a que a civilização brasileira passou a desfrutar, estacionada na letargia existencial, como que hipnotizada pela malícia dos representantes que elegeu, de regra, para representar contra os seus próprios interesses. Aqui não jogamos mel em urtiga para chamar coceira de cosquinha. Não desejo que prove o seu amor pela natureza deitando sobre urtigas em nome de um falso direito ambiental: no ambiente onde somente a razão cura e a informação absolve.

     Numa república de idiotas, o que poderia prosperar? Somente a decadência e o que lhe é acidental, por conexão direta com o efeito que produz, ou seja, o caos. Não o social (expressão que figura a imagem do vazio cheio de zeros ou bolinhas, para melhor compreensão). Da individualidade e da capacidade individual , referência máxima que alguém pode ter de si mesmo. No traço distintivo que nos classifica como espécie única, dentre as outras bestas na natureza: a racionalidade.

     O homem de Troia é uma paródia do cavalo de Troia, mas que ensina que não é necessário construir uma estátua em forma de cavalo para preencher de homens o seu interior, buscando se infiltrar no território inimigo. Basta introjetar no interior de homens vazios, padrões equinos de comportamento, replicá-los em sistema  e deixá-los livres para montá-los quando e onde desejar. Até participarem de sufrágios para escolher, dentre os cavalos disponíveis, o de sua preferência para representá-los. Dentre os vários currais eleitorais, um para pastar feliz. Sem sentir o peso sobre suas costas.

     Já o homem universal não permite que o seu melhor seja extraviado por forças distintas daquelas que ele próprio produziu. Não admite que lhe imponham selas nem cangas, nem arreios, nem esporas. Sofisticadas ou não. Mas é universal por haver se filiado ao constructo universal que indica que no interior de homens habitam homens reais, e que, sendo homens reais todos os homens que há, presunção que estabelece como premissa inicial de qualquer de suas relações pessoais, qualquer ofensa à vida, a liberdade, a autonomia e a razão alheia é ofensa à imagem refletida pelo arquétipo universal e padrão a qualquer forma de vida efetivamente humana. 

     Sendo a razão atributo (em tese) exclusivamente humano, a afronta à razão de qualquer homem é afronta a sua natureza e a afronta à sua natureza é sinal claro de afronta à sua dignidade. Sendo livre pode o homem universal pactuar por seus interesses e, de regra, não haverá consenso quando a ambas as partes não aproveitar ao menos algum interesse. 

     Tentar converter um homem em uma besta é pretender escravizá-lo aos limites inferiores de sua humanidade, já que, embora haja similaridade entre a besta e o homem bestial, a menor porção de razão especulada em seu íntimo já estabelece uma diferença invencível, não se havendo de presumir, aprioristicamente, que a razão do homem não pode se revoltar contra a sua consciência, porque estamos diante de conceitos distintos. Muitos homens racionais foram responsáveis por execráveis guerras e com elas, pela aplicação de seu intelecto para fins que somente uma razão invertida poderia admitir. E razão invertida é o melhor forma de explicitar a irracionalidade proporcional de um indivíduo. Seus efeitos revertem sempre em afronta à vida, à liberdade, à autonomia e à razão alheia. Quanto maior o denominador, menor será todo o resto.

     O homem universal - arquétipo perfeito de uma humanidade possível - é um homem a quem a razão serve de instrumento de sua consciência. Na vida das realidades , é possível aferir a consciência em ação quando a razão calcula que irá perder se tomar determinada ação, e ganhará se tomar decisão no sentido inverso. Ganhar fama, reconhecimento, poder temporal, etc.. O mediador entre a consciência e a razão , para quem as possui, é sempre o fator distintivo entre uma verdade e uma mentira. Poderia avançar no tema, mas minha intuição me diz que tentar superar o homem de Troia está de bom tamanho.

     Não há nada de novo em Brasília e nem no Brasil. Por quantos rompimentos institucionais o país já foi vitimado? E de todos eles, qual não teria sido causado pelo populismo, pela idolatria política e pela técnica de fazer uso da máquina estatal como meio para auferir a realização de interesses privados, vantagens particulares, por meio dos órgãos e instituições públicas?

     Numa república de homens de Troia, os indícios, os sinais, as assinaturas dos agentes que produzem ações que afetam à coletividade são previsíveis, perigosamente previsíveis. 

     Nós, restos mortais do que sobejou da epidemia cavalar que nos assolou, homens e mulheres sadios e não infectados, podemos ainda retornar à posição de cavaleiros e amazonas de nosso destino, desde que não permitamos inversões despropositadas, como a de admitir que possa o cavalo montar sobre o cavaleiro e conduzir, no páreo das probabilidades, resultados indesejados, ainda que previsíveis. Dom Quixote nos inspire às regras de cavalaria e ao heroísmo romântico que nos conduzia, com coragem, aos desígnios de nossa própria escolha.

     Os moinhos de ventos estão logo ali a frente. Conseguem ver? 

     Partamos para salvar nossa doce Dulcinéia. A democracia da razão operando livremente sob a luz de toda a consciência existente, no sentido de perceber que o que é bom para todos convida ao consenso, o que é bom somente para cada um, possui um preço de aquisição sujeito às regras de mercado.

     É vedado infringir as próprias razões e permitido, mesmo desejado, acordos entre homens e mulheres livres. 

     A priori, que o Estado se dane. Até que seja algum dia de alguma utilidade efetiva e demonstrada e não ferramenta utilizada para extorquir individualidades. 

     Quanto ao Aquiles, aquele do mito, confeccionemos um gigantesco esparadrapo para proteger todos os nossos calcanhares contra as distrações de caminhantes alheios à realidade ou distraídos.

     Que 2023 seja o ano I do homem universal nascido em terras brasileiras. São os votos da GE.