sábado, 3 de dezembro de 2016

REPÚBLICAS SOBREPOSTAS NO BRASIL?

     Se existe vida após a morte, Montesquieu deve estar num spa psicoterápico para refletir sobre as consequências que sua clássica divisão estrutural de funções produziu. Principal articulador do sistema de freios e contrapesos operados, em maior ou menor grau, nas sociedades democráticas modernas, Montesquieu, alavancou a tese de que a república deveria operar de forma harmônica e independente sobre o tripé de suas mais essenciais funções, qual seja, a legislativa, a executiva e a jurisdicional.  Rousseau, cuja obra mais renomada é o Contrato Social, certamente tremula ululantemente na fila de emergência de algum departamento cósmico responsável pela operação de reencarnação dos seres, argumentando pela urgência no atendimento especial que o seu caso requer: a morte de seu tratado. Vale lembrar que no Contrato Social, a expressão "SOBERANO" ali utilizada, conforme ele próprio explica, é dirigida ao povo (ou a sociedade). Que falta faz ao país a disciplina de Organização Social e Política Brasileira (OSPB). O motivo de sua criação era proporcionar aos estudantes o conhecimento do sistema assentado no conceito de Estado Democrático de Direito, hoje, tão dilapidado por motivações espúrias.  Montesquieu e Rosseau, acreditem, operam em seus tratados um sistema propositivo muito mais complexo do isso. Merecem algum dia serem propalados nos bancos escolares.  Mas nosso espaço é,  conforme sempre salientamos, voltado para o público interessado, não necessariamente aquele especializado.
     Em conta da repercussão gerada com a manobra produzida pelo legislativo nacional ao introduzir no sistema deliberativo, de supetão, um projeto de lei que regula o abuso de autoridade, a Genetriz Estatal não poderia se omitir em opinar, dado o seu desígnio existencial de levar ao leitor, uma reflexão acerca da estrutura do Estado, hoje, anêmica de racionalidade, deficiente na instrumentalização de sua função primordial - instrumentalizar a promoção do bem comum - e, após os últimos movimentos da república, moribunda mesmo. 
     Após assistir a sessão temática do Senado para debater sobre o projeto de lei cuja matéria trata do tema "abuso de autoridade", incorporado no processo legislativo, mais do que no calar da noite, mas no calar da madrugada do outro dia (calando-nos as expectativas), ouvindo os principais convidados a expor os seus respectivos pontos de vista, dentre os quais , o magistrado Sérgio Moro, o Ministro Gilmar Mendes, o Senador Roberto Requião (relator no projeto), e algumas intervenções de parlamentares daquela casa, fomos convencidos de que, estabelecido o contraditório, os argumentos levados à tribuna revelaram que o produto final será deliberado sobre as bases medíocres tradicionalmente aceitas. Aqui se esgota a primeira parte da matéria: o tema do abuso de autoridade é relevante, urgente, complexo, e, qualquer atualização legislativa no sentido de aprimorar a relação de poder derivada do exercício de funções públicas e sua relação com a sociedade é bem vinda.
     O problema surge, e é um problema inclusive desenvolver a tese de sua existência, quando analisamos as circunstâncias nas quais o legislativo introduziu o projeto de lei sobre abuso de autoridade para "deliberação deliberada". O projeto tramita na Câmara dos Deputados desde a década passada. Sua tramitação, até então, já havia estabelecido uma espécie de união estável com as teias de aranha produzidas pelo tempos da inércia procedimental a que estava submetido, havendo até quem estivesse disposto a convertê-la em casamento, visando convalidar o regime de parcial comunhão de interesses entre o nada e o coisa alguma que, até então, vicejavam em sono profundo, na quinta dimensão do desdém legislativo. Segundo dizem os astrólogos, próximo de Urano.
     A preocupação de Sergio Moro centrou-se na criminalização da interpretação. Fez a defesa, ainda, da função policial ao criticar o texto constante do projeto que criminaliza o uso de algema, na forma em que se encontra redigido. É importante chamar a atenção: a função jurisdicional consiste exatamente na aplicação da lei e não há como aplicá-la sem, por óbvio, interpretá-la. O que se pretende salientar é que, se direta ou indiretamente retirarem do magistrado o poder de interpretar a lei  de acordo com o seu livre convencimento, não se está atacando apenas a chamada operação lava a jato, mas ao próprio pacto federativo. Explica-se: a Constituição Federal retrata a estrutura da República de forma a manter independentes e agindo em sistema de harmonia, as funções estatais de legislar, administrar e julgar. Se um dos poderes, a pretexto de regular determinada matéria, impinge, ainda que sutilmente, restrições que impilam ao outro o menor obstáculo a sua liberdade funcional, o resultado será sempre uma infração ao pacto republicano. No caso sob apreço, o texto inserto no projeto é, digamos, natimorto. É evidente que o chamado crime hermenêutico não pode prosperar.
     Isso não implica em reconhecer que muitas das decisões sejam tão estapafúrdias que podem mesmo ser, do ponto de vista jurídico, reputadas como "ato inexistente", sobretudo quando não fundamentadas (ou muito mal fundamentadas). Para isso existem os recursos e os habeas corpus .
     Gilmar Mendes, em sua sustentação, apontou problemas afetos às pessoas pobres, desamparadas, noticiou a existência de presídios onde o juiz responsável pela execução da pena nunca havia visitado o presídio, etc., problemas que existem desde o descobrimento do Brasil à época das ordenações Manoelinas. Sugeriu que fossem incluídos os agentes do TCU (Tribunais de Conta da União) como latentes autores de abusos, dentre outras sugestões. Só não digrediu do porquê, se no país nunca se deu qualquer bola para abusos de autoridade, exatamente agora que a equipe da lava a jato está chegando próximo da nata política em vias de se transmutar em coalhada carcerária, a preocupação com os pobres, presos e necessitados veio à baila. Por quê?
     Repetimos: Todos os problemas levantados pelos interlocutores de fato existem e são notórios e uma norma que regule a limitação e o abuso de poder é de fato relevante no contexto do sistema implantado para regular agentes políticos e públicos. O que se critica aqui, é: se o projeto estava parado desde a década passada e, se mesmo gerando fungos pela espera de sua viabilização através do processo legislativo competente, jamais levou em consideração toda a sorte de abusos de autoridade praticados no país há séculos, porque ela passou, exatamente agora, a ganhar alguma relevância na percepção de nossos deputados e senadores da República? Porque as chamadas dez medidas contra a corrupção (que possui pontos discutíveis) tramitou de forma regular, com amplo debate público, e o projeto de lei que regula o abuso de autoridade, cujos pontos exigem ponderações delicadas e sutis, foi jogado no balaio circunstancial em que medidas imprescindíveis ao depuramento moral da administração pública já se encontravam em adiantada fase de processamento legislativo?
     A resposta é óbvia, indubitável, incontestável e insofismável: porque os interessados são os próprios acusados. Isso é de uma imoralidade sem adjetivos, pois não há palavra na gramática brasileira que possa traduzir o asco gerado por esse movimento político enquanto a nação dormia ou dormitava. Fica aqui registrada a sugestão para que se crie, no futuro, uma palavra que possa,  de forma complexiva, expressar o desejo profundo de que a própria sequência de DNA dessa classe degradante que governa a república jamais houvera sido desencadeada. Não nos surpreenderia que a análise de sua sequência desembocasse numa categoria qualquer de serpentes caiadas. Talvez a da espécie das jararacas.
     Interessa para o desenvolvimento dessa matéria, inicialmente ressaltar que "os pobres", "os desvalidos", "os menos privilegiados", novamente são utilizados para justificar essa casuística inserção na pauta de deliberação do Congresso. Essa categoria, a que chamaremos de "apartados sociais",  frutos de uma estratificação social consolidada no tempo, são mantidos apartados para servir ao velho discurso da preocupação com os mesmos, que por estarem apartados de qualquer possibilidade de compreender o sistema, em seu todo considerado, sem o saberem, retroalimentam-no elegendo exatamente quem os mantém a par de todas as considerações. Quem, pois a produz e quem a utiliza a seu bel prazer para o seu próprio interesse? Falamos da estratificação social consolidada no tempo.
     O Ministro Gilmar Mendes ao pedir a inclusão dos membros do TCU no contexto do projeto de lei aqui comentado, poderia estar a defender um interesse próprio, na medida em que o TCU fiscaliza a manipulação de recursos públicos e ele, como ex-Presidente do STF e presidente do TSE, está submetido a essa fiscalização? O que nos garante que no subsolo das sugestões apresentadas,  não dormita a intenção de alvejar eventual e futura decisão do TCU, quando analisar as contas apresentadas na sua gestão, em relação aos recursos por si administrados? Especulações que aqui empreendemos como mero exercício lógico O mesmo deveria fazer a sociedade nesse momento crucial da república. É que o texto já se refere à agentes da administração pública e chamou-nos a atenção esse preciosismo do ministro. Tratando-se de um professor de direito constitucional, não deve ter sido à toa. É tão razoável ponderar sobre tais possibilidades, que ao aludir a questão dos presídios abandonados e totalmente ignorados por juízes de execução penal (ou Corregedores), para fundamentar a necessidade de uma lei que contenha abusos de autoridade, olvidou o Ministro que esses estabelecimentos penais (na esfera criminal) sempre estiveram à margem do que preconiza a lei de execuções penais e estão assim, exatamente porque o poder judiciário prefere muitas das vezes empenhar recursos para que desembargadores e magistrados realizem cursos no exterior do que aportá-los no aprimoramento do sistema de fiscalização dos estabelecimentos penais. Todos sabem que falta recursos, que há insegurança, etc., mas, ninguém, na comissão temática, levantou esta questão. É porque o poder não  está preocupado com os "apartados sociais", mas apenas e somente consigo próprio. 
     A  remuneração de muitos magistrados, membros do ministério público, dos próprios tribunais de contas, é muito superior a do teto estabelecido na Constituição. Isso é tratado como um probleminha a ser resolvido, mas, na visão da Genetriz, é um desvirtuamento do poder que merece apuração criminal (ou mesmo crime de responsabilidade). Quem não cumpre a Constituição poderia julgar quem não cumpre a Constituição? Entendemos que não. Quem não cumpre a Constituição poderia perseguir quem não cumpre a lei? Entendemos que não. Mas quem poderia tomar alguma providência se (i) o Ministério Público não fiscaliza quem de seus procuradores/procuradores percebe remuneração acima do teto, (ii) os tribunais, no mesmo sentido, são silentes quanto a essa circunstância em relação aos seus juízes e servidores, e (iii) o legislativo, para não ser repetitivo, nada faz de diferente em relação aqueles outros poderes, incluído aí o poder executivo, inclusive suscitar a existência de crime de responsabilidade. O pacto federativo, nesses moldes, não convalida uma república, mas um clube especial de troca de favores. O mais baixo meretrício pode ser considerado virtuosíssimo se comparado ao que ocorre no país. 
     Os senadores que parlamentaram no púlpito do Senado utilizaram-se de argumentos, quase todos validáveis. Mas vale para eles o mesmo raciocínio. Se são investigados, sua argumentação validada pela lógica da ideia que traduzem é dilapidada pela má-fé de seu propósito. É casuísta na pior acepção do termo.
     Recentemente a mídia retransmitiu uma parte da transmissão de julgamentos do STF em que o Ministro Gilmar Mendes perfaz uma crítica aos magistrados que se manifestaram à porta do STF, registrando que muitos poderiam estar percebendo remuneração acima do teto, o que é verdade, mas estaria ele preocupado com a ética? Minha intuição diz que não. Macular a imagem da magistratura é uma forma indireta de atingir Sérgio Moro e toda a equipe da lava a jato. A presidente do STF, Ministra Carmem Lúcia, externou que a intenção dos magistrados extrapola a questão do salário, mas, questionada por Gilmar Mendes sobre os mesmos, afirmou que "aquela presidência também não aprova salários acima do teto". Queremos chamar a atenção dos leitores não para as especificidades de cada fato, conforme o interpretamos, mas para a generalidade de se contexto, onde tanto as remunerações percebidas acima do teto (qualquer que seja o cargo) quanto a abdicação de soluções concretas coexistem em meio a discursos para a plateia. Dirão eles que não sabiam?
     Um impedimento de uma Presidente da República (e seu vice), através uma chapa eleita com recursos de propina da, dentre outras, Petrobras, é autorizado por uma Câmara de Deputados e processado e julgado por um Senado, onde muitos de seus integrantes também são acusados pelo mesmo esquema. A presidente é condenada mas não se lhe cominam a pena de perdas dos direitos políticos, como determina a Constituição Federal, de forma expressa. Por uma determinação do presidente do STF (após um acordão com membros do Senado),  a Constituição é novamente violada. Deu o presidente do órgão de cúpula do judiciário, uma interpretação tão descabida ao texto constitucional que poderia mesmo ser reputada abusiva, para adjetivar delicadamente o que para nós constituiu, na verdade, crime de responsabilidade patente, opinião que faz demonstrar como o debate sobre o crime hermenêutico é sutil e complexo e não pode ser regulado de supetão, sobretudo quando a interpretação é subscrita pelo presidente da corte maior, num contexto onde a parte legitimada para deliberar sobre a existência de crime de responsabilidade foi a mesma que acatou a decisão.
     A decisão, também,  foi acatada pela própria autora do impeachment que sustentou a tese do crime de responsabilidade praticado pela presidente Dilma, exposta pela mídia como o arauto da integridade, com uma naturalidade espantosa, dando entrevistas no sentido de que, ao invés de sentar o pau na fraude perpetrada no julgamento, em relação ao tema da perda dos poderes políticos, ao contrário, sustentou o cabimento da interpretação dada pelo presidente do STF informando que há posição doutrinária nesse sentido. A única posição nesse sentido que nos ocorreu foi  a posição de ajoelhada pelas circunstâncias. Animais de cascos também mantém-se sobre quatro patas, o que não deixa de ser uma posição. Tudo são, mesmo, posições a que se pode comentar, ainda que não doutrinariamente.
     Vale lembrar que o atual Presidente da República foi eleito na mesma chapa para a qual foram desviados recursos da Petrobras. Ele não sabia. Eles não sabiam. Você sabia que o sabiá sabia assobiar? Quem sabe alguém saiba de algo. O sabiá que se dane.
    A pressão entre poderes não tem outra causa senão o levantamento de informações obtidas pela operação lava a jato e outras operações menos conhecidas. Se você me condenar eu mando fazer uma auditoria para saber se você ganha mais do que deveria ganhar. Se você me entregar, eu lhe entrego também. O tempo que vou levar para promover as decisões judiciais que me cabem e como irei decidir dependerá do que você irá fazer no Senado ou na Câmara e, vice-versa, e vice-versa, e vice-versa, numa espécie de dízima periódica direta e reversa que pode mudar de sentido a qualquer momento.
     Há no país duas repúblicas operando. A república das elites do Brasil e a república pro forma estabelecida para a sociedade em geral, em especial aquela que não mantém qualquer vínculo com o Estado. A primeira das repúblicas, está sendo devastada pela operação lava a jato. Suas vísceras estão sendo expostas e, conseguindo-se rasgá-la por inteiro, morrerá, Oxalá assim aconteça.  A segunda das repúblicas está despertando enquanto tal. Devagar, é verdade, mas despertando. Se acordada fosse, por um despertador nuclear,  cujo som produzisse a realidade, uma revolução se imporia. Uma revolução de verdades. 
     A república falsificada será exposta pela perícia popular. A sociedade demonstrará que ela se sobrepôs ilicitamente sobre a república de verdade. A democracia, após séculos, dá sinais de vida. Eu a sinto desejando o parto ansiado pelos brasileiros há séculos. A república de verdade quer evidenciar-se enquanto possível. Nós já sentimos as primeiras  contrações do parto porvir. Cuidemos da gestação dessa república que deseja ardorosamente nascer. Escute o seu coração! Diga não ao aborto das possibilidades.    
     Enquanto ex-presidentes expõe a sua inferioridade moral argumentando que a lava a jato não tem consciência dos prejuízos que está causando à economia do Brasil, um grupo de profissionais labora no sentido de facilitar o parto de onde nascerá a republica de verdade, formada de apartados sociais, outrora só presente nos discursos falaciosos dos integrantes da república de mentira.
      O líquido amniótico da nação que nascerá, lavará a alma da nação, sedenta pelo verdadeiro nascimento de república de verdade. Ela nascerá na república de Curitiba, uma espécie de república responsável pela fase de transição entre a morte da primeira e o nascimento da segunda. Os espelhos estão sendo quebrados. Espelhos tortos, suas imagens reais ou virtuais, o jogo de focos, terá fim. Veremos o que há para ser visto tal qual se apresentar aos nossos olhos.
       Montesquieu e Rousseau: descansem em paz. 
     PS: Acabamos de ouvir a notícia de que a operação lava a jato recebeu o prêmio da organização transparência internacional. O mundo premia o trabalho que vem sendo feito por aqui. Nós, os apartados sociais, os que não tem convívios maiores com o poder, não podemos fazer outra coisa que não o integral apoio aos agentes do parto porvir. Cirurgiões da novidade. Parabéns lava a jato e toda a sua equipe, apareçam ou não nas mídias ou redes sociais.