quarta-feira, 4 de novembro de 2015

AUTOFAGIA ONTOLÓGICA: QUANDO A INDETERMINAÇÃO DO DIREITO DEVOROU A AUTODETERMINAÇÃO DOS COMPORTAMENTOS DOS POVOS (ou indução ao suicídio coletivo das autodeterminações em geral). .

     Os conceitos indeterminados, para o direito, são aqueles utilizados pelo legislador no processo de elaboração legislativa que, não se tratando de institutos absorvidos pela ciência do direito ou pela sistema epistemológico aferido e pertinente, necessita passar por um processo de interpretação especial pelos aplicadores da lei. No chamado neoconstitucionalismo, sobretudo após o advento da Constituição Federal em vigor, só não podemos afirmar que eles são  prevalecentes porque o que prevalece é não haver, na doutrina moderna, um conceito determinado acerca do próprio conceito de indeterminação dos conceitos. 
     Hoje, se por um lado é interessante notar o alto grau de publicações de livros de direito, fenômeno que reputamos positivo, por outro lado, há muitos autores competindo para ver, dentre os nomes novos que criam para este ou aquele fenômeno jurídico, qual irá prevalecer. Os conceitos vêm sendo transformados em objeto de mercancia sujeitos à lei da oferta e da procura no mercado editorial.  A confusão é tão grande que nomes e conceito tidos como  inovadores acabam por se reportar, na verdade, à ocorrências citadas e reguladas pelo Código de Manu, há milhares de anos atrás. A compreensão do  sânscrito  é fichinha se comparada ao ato grau de confusão (confusioneologismo, já que também temos direito de inovar) que o direito nos vem impingindo Uma batalha vaidosa entre genialidades auto concebidas.
     Para exemplificar, a Constituição Federal garante o exercício da propriedade, estabelecendo uma condição para a plenitude do exercício de seus atributos, qual seja, a exigência de que seja observada em consonância com a sua função social. O que é função social? Depende da forma como se pretende aplicar a garantia e a condição constitucionalmente exigida para o seu exercício. É como chegar numa lanchonete e pedir um sanduíche. Hamburger de frango ou carne bovina? Com ou sem maionese? Ketchup? Folhinhas de alface? Com ou sem gergelim? Gosto não se discute.
     Se por um instante nos recordarmos que num estado de direito a lei é o vetor sob o qual se referenciam os comportamentos e as relações decorrentes da criação do Estado, é possível imaginar que indeterminações de conceitos são, a priori, mal vindas. Uma indeterminação pode gerar anos de processo. Para nós, cidadãos normais, poder fazer (ou estar proibido de) isso ou aquilo até o julgamento de uma liminar (decisão provisória), e,  depois, ao contrário, submeter-se a sua cassação (da liminar), cujo efeito principal é o de  inverter o sentido do vetor indicativo das possibilidades anteriores (uma liminar autoriza a um comportamento que a sua cassação desautoriza logo em seguida), significa jamais saber o que fazer até que seja julgado o mérito da questão -apreciado, via de regra, em várias instâncias.
     Mas o conceito de indeterminação aplicado ao direito nos interessa no resultado prático, real e materializável que  produz. A cada alteração do significado dos textos da lei, fora dos gabinetes judiciários há uma consequência que implica em perdas (ou ganhos), danos e suscetibilidades imprevisíveis.
     A própria Constituição, de outro lado, estabelece como garantia a segurança jurídica. Temos, pois, um sistema constitucional (DNA comportamental virtual e abstrato de possibilidades) que ao mesmo tempo diz que todos devem saber das regras do jogo e, muito sobretudo, prever os efeitos que se pretende produzidos no dia à dia da realidades pessoais de todos os cidadãos. Mas as regras do jogo se submetem a um sistema onde até o que não é indeterminado, pode sofrer a indeterminação oriunda de um (ou vários) processos de interpretação (não raras vezes contraditórios), desestabilizando as relações que se pretendeu inicialmente estabilizar. Ora, para que se presta um sistema legal se não for para dar previsibilidade aos jogadores na batalha campal que se instaura a cada segundo no cotidiano de pessoas e empresas.. Como resolver o problema? Ressalte-se que, na vida real, processos demoram anos e fluem numa lentidão que, se comparados a vida real, são verdadeiramente lesmáticos (neologismo que nos ocorreu).
     Uma operação de importação de um material que fomenta uma indústria submetida a prazos de entrega contratualmente estabelecidos pode gerar uma cadeia de acontecimentos complexos que ultrapassam fronteiras. Uma apreensão de bens pode ser decretada indevidamente. Uma autorização pode ser deferida lesando patrimônios públicos ou privados. Um ecossistema pode ser total ou parcialmente danificado em caráter irreversível entre o instante em que se defere (ou indefere) um pedido urgente e o momento em que a ação é julgada em caráter definitivo ao final do processo, após sucessivos recursos, quando se determinará o que significa ou significará o conceito indeterminado que gerou toda a querela. 
     É natural que haja distância entre os efeitos pretendidos por uma lei e as constantes transformações sociais ocorridas no ambiente onde ela se aplica, mas o que dizer quando essa distância, naturalmente exorbitante, é temperada com a indeterminação da compreensão acerca das regras do jogo, em que pese o texto da lei ser o mesmo? Avançamos: o que se dizer quando essa distância faz percorrer um caminho traçado em forma de labirinto, onde cada intérprete muda o local do obstáculo anteriormente alojado no lugar "A", para o lugar "B", à revelia, não raras vezes, do próprio caminho indicado pela lei? O excesso de leis, consorciado com o excesso de normas menos fortes como decretos, portarias, instruções normativas, despachos, decisões administrativas de todos os graus, bilhetinhos e telefonemas - estes uma via alternativa para burlar possibilidades - agrava o quadro. São labirintos dentro de labirintos colocados em labirintos gigantescos, enquanto o Estado Minotauro aguarda para devorar a todas, dissemos todas, as possibilidades. Uma Constituição que é emendada quase três vezes por ano garante que estabilidade? 
     Mas se a função do Estado é garantir a estabilidade social, para quê precisamos de uma Constituição, nestes moldes estruturada, uma vez que apenas a confusão e a instabilidade são os únicos efeitos reconhecidos que produz? A reposta é clara: PARA NOS MANTER PRESOS À INDETERMINAÇÕES SEM FINS E SEM FIM.
     Se, como pretendemos clarificado, a indeterminação das regras (e de sua interpretação) é a regra, quem arguirá pela determinação dos objetivos consignados no Texto Constitucional? Assim, querido leitor(a), todos nós poderemos agir na legalidade até que ela seja modificada pelo entendimento de um órgão judicial, que pode ser reformado logo em seguida (e mais e mais a cada recurso), até a definição final quanto à acepção utilizada pelo legislador pretendendo regular comportamentos, quando diz: sim, você deve (ou pode) ou quando diz não, você não deve (ou não pode). Amplie-se esse raciocínio para os decretos que regulam essa leis, as portarias, etc....até aquele telefonema que torna tudo mais prático. Em que medida a sua liberdade (constitucional) é uma ficção jurídica inaplicável e impossível de ser exercida, uma vez que a previsibilidade garantida pela Constituição o gato comeu! Não se sabe é se dona chica-ca-ca, admirou-se do berrô que o gato deu. É que o gato não sabia direito se podia ou não podia berrar. A decisão final só pintou quando a neta de dona Chica (kk) há havia morrido e o pau que atiraram no gato enterrado junto com ela.  
     Não resta outra coisa a fazer senão burlar a lei, não se devendo entender a expressão "burlar a lei" como uma apologia  à degradação  da sociedade pela via do comportamento caótico, anarquista, mas sim,  como uma consequência inexorável de um estado de coisas cujo quadro aponta para poderes institucionais que não sabem fazer outra coisa senão qualquer coisa, exceto aquilo que deveriam fazer, qual seja, exercer a sua competência e legitimidade nos termos da Constituição. Como a Constituição ela própria vem se revelando indeterminada em sua acepção, conceito e finalidade, vivemos em um estado indeterminado de direito (veja o quanto e em que velocidade se altera - estranhamente - o texto constitucional). Leis que mudam mais do que a própria realidade fática que regulam não são, na acepção do termo, leis, mais ordens inobserváveis de (i) canalhas, (ii) bandidos ou (iii) idiotas.
     Se há uma regra que impinge ao escravo normativo (atualmente nominado cidadão) que não se pode alegar como escusa o desconhecimento da lei, deve-se exigir a contrapartida natural e lógica desta regra que determine que leis que deixam de ser leis da noite para o dia são um irrelevante jurídico a quê não se deve prestar qualquer atenção, e que, lei que cada um interpreta como quer, não pode obrigar a quem quer que seja, sob pena de afronta à liberdade, garantia constitucional cujo peso ponderado é inequivocamente maior do que qualquer procedimento de geração (proposital ou não) de indeterminações (fábrica de dúvidas em sistema de produção em série) e sua filha primogênita, a segurança jurídica. Revoga-se as disposições em contrário.
     A forma mais sutil de escravidão é acatar como lei a textos burros e desorganizados em sua lógica e inteligência, ainda que aprovados pelo poder competente ("competente" aqui tomado em seu sentido jurídico, é claro). Se a indeterminação ampla, geral e irrestrita ganhar corpo em proporção maior do que a determinação dos conceitos (e do direito), as instituições de poder devem ser responsabilizadas, pois pervertem o conceito de segurança jurídica, maculando, dessa forma, a própria liberdade, ambas tuteladas pela Constituição Federal no Capítulo que regula os direitos e garantias individuais e coletivos, normas estas que, a par de serem inalteráveis (cláusulas pétreas) , quando violadas para direta ou indiretamente constituírem óbices ao seu exercício, implicam em crime de responsabilidade  Crime constitucional de responsabilidade.
     Que esse texto incentive à reflexão e renove as esperanças das consciências que se cansaram de ver sua liberdade comprimida por (i) canalhas, (ii) bandidos ou (iii) idiotas.
     Que estimule à sociedade a delimitar e conhecer a sua própria DETERMINAÇÃO. Acho que é daí que vem a ideia de AUTODETERMINAÇÃO DOS POVOS internacionalmente reconhecida e assegurada.
     Aqui terminamos nossas considerações, digo, aqui determinamos nossas considerações.