sexta-feira, 10 de fevereiro de 2023

O mito da caserna: a paródia que nem Platão ousou explicitar.

    Hoje ocorreu-me de falar sobre o fenômeno do Bolsonarismo e sua associação com a caserna, fenômeno agigantado no imaginário popular e que ganhou corpo com o advento das redes sociais. Antes preciso noticiar-me historicamente. 

    Servi às forças armadas como praça da aeronáutica por catorze anos, havendo ingressado com dezesseis anos, após ser aprovado por concurso público em uma escola de formação militar. Mas preciso alargar meu histórico para dar uma dimensão ao leitor da perspectiva que começo a construir sobre o fenômeno do Bolsonarismo no ambiente da caserna. Sou, ainda, filho de militar, passei grande período de minha infância morando numa vila militar isolada da cidade, local onde fiz grandes amizades, quase todas elas remanescendo, menos do que eu gostaria, até os dias atuais. As redes sociais facilitaram a manutenção desse contato.

    Meu desligamento se deu a pedido, após haver me formado em direito. Sai pela porta da frente e classificado no excelente comportamento (como, eu ainda não descobri). A última frase que ouvi foi na seção de investigação (inteligência), última de uma série de seções pelos quais devemos passar para obter uma espécie de quitação geral na unidade militar. Eis a frase: mais um militar competente pedindo desligamento. Nessa época, muitos colegas pediram para se desligar da força, por motivos vários. 

    Por que essa introdução me pareceu necessária? Para esclarecer ao leitor que venho de um ambiente formado por valores militares, que minha saída foi voluntária e fruto de uma opção pessoal, mas que, de outro lado, conheço um pouco do ambiente explorado politicamente por Bolsonaro e, em alguma medida, os próprios valores que são mobilizados por essa personagem na hora de implementar suas escolhas políticas.

    Quando Jair Bolsonaro deu a fatídica entrevista para a revista Veja, foi ovacionado pela grande maioria na caserna, especialmente pelos praças. É necessário, se desejar o leitor compreender o que pretendo externar, contextualizar historicamente as ocorrências. Nessa época, os militares questionavam os seus baixos salários. Ouvia-se muito a turma dizer que era injusto que um controlador de tráfico aéreo que tomava conta de um centro de controle de área (do espaço aéreo), com quase trinta anos de serviço, ganhasse menos que um copeiro do legislativo recém empossado. Cá entre nós, estavam certos. 

    Aos poucos vou complicando o contexto e apontando os paradoxos que a caserna propicia aos seus integrantes. O salário era indigno da responsabilidade assumida e ainda mais indigno se comparado à remuneração e vantagens percebidas por outros servidores de outros poderes. Se imaginam que a comparação salarial realizada pela tropa buscava reduzir a importância ou o valor percebido fora da caserna, pode esquecer. Não. A inconformidade buscava apenas denunciar a desproporcionalidade em razão da responsabilidade assumida e única e exclusivamente o reconhecimento financeiro decorrente da atividade militar. No ambiente da Aeronáutica (pois em relação às outras forças as motivações pareciam ser, similares em natureza, mas distintas em sua justificação). Sinto que vou me estender, por isso vou direto ao ponto. Alguns desconhecem essa realidade que almejo traduzir a quem, ainda,  eventualmente,  esteja a ler este texto.

    Contexto histórico e sintético: eleições diretas, nova Constituição e transição entre regimes.

    Nas primeiras eleições diretas para a presidência, dos cerca de quinze militares que compunham a minha seção, apenas dois buscavam alternativas liberais, dentre os quais eu me incluía. Dez votavam em candidatos de esquerda, dividindo-se entre Brizola e Lula, com predominância para este. O restante era centro. O que pretendo relevar nesse momento? Que a ideia de que o militar era de direita não fazia nenhum sentido para mim. Que era militar e via o que ocorria na caserna. Para que o leitor possa fazer alguma ideia, imaginem isso: lia no período de descanso, um livro cujo título era "o reizinho populista" que eu havia encomendado do Instituto Liberal. Os colegas de trabalho ironizavam a escolha por se tratar de um livreto de cunho liberal, como se fosse a coisa mais absurda do mundo. Algo muito semelhante ao que se vê nas redes, mas promovidos por adoradores da esquerda mais patológica. Na sua percepção você conseguiu imaginar a cena, sabendo que estávamos num ambiente de trabalho e militar? Nessa época eu tinha cerca de dezoito anos. Casos assim ocorriam com frequência. Ironizar a simpatia pelo liberalismo econômico sempre foi uma forma oblíqua para isolar autonomias dotadas de alguma racionalidade não grupal. Não acredita? Como eu lamento! Hoje acredito que algo tenha mudado e nem sei dizer se para melhor.

    Na questão salarial, cara aos militares (é quase um vício falar em salário na caserna), Bolsonaro uniu o muito que havia de esquerda na corporação com o quase nada que lá havia de direita. A sociedade, fora da caserna, não faz ideia do quanto isso mobiliza os militares. Aquela época, ainda mais.

    Quando saiu candidato a vereador no Rio, teve apoio da tropa, que se identificou com o argumento do desprezo que os governos da nova ordem dedicavam aos militares na questão salarial. FHC contribuiu para o acirramento dos ânimos e foi o primeiro a dividir a caserna entre praças e oficiais superiores. Modificou a Lei de Remuneração dos Militares e deu gratificações para quem tivesse cursos que só os oficiais poderiam fazer. Antes, o soldo dos praças era vinculado ao soldo do Ministro da força correspondente. Como eu disse, para entender o fenômeno do Bolsonarismo, é necessário compreender o contexto histórico e cronológico das ocorrências políticas relacionadas às forças armadas. Já o ouviu falar de FHC? Espero que tenham compreendido o objetivo que Jair buscou com sua falas. Política pura!

    Outro aspecto que merece relevância, diz respeito aos ciclos geracionais dos ingressos nas forças. Antes, para ingressar como praça por meio de concurso público, era necessário ter diploma de primeiro grau completo. Conforme as novas gerações de militares foram ingressando, o comportamento da tropa, agravado pelos baixos salários, compeliu-a a buscar no aprimoramento educacional uma saída alternativa para complementar sua renda, e, quem sabe, prestar concursos para outros cargos em outros poderes, onde se pagava melhor. Muitos saíram das forças e migraram para a estrutura de outros poderes, não por indicação política, mas por concurso público. Tenho colegas que, atualmente, estão trabalhando em vários órgãos públicos de ambos os poderes.

    Esse movimento é muito mais relevante do que pode parecer para quem lê esse texto e não conhece o ambiente da caserna. Não eram raros os casos em que um capitão, que outrora comandava um subordinado com o primeiro grau completo, tivesse que dar ordens a um subordinado com doutorado obtido na Alemanha e fluente em ao menos duas línguas estrangeiras. Isso dá uma ideia do que pretendendo explicitar ao analisar o fenômeno? Quando sai da caserna, na minha seção, deixei alguns doutores ou doutorandos, mestres ou mestrandos, quase todos com curso superior e apenas um que optou por outro caminho.

    Bolsonaro soube explorar politicamente um ambiente cujos valores dominava, cuja linguagem conhecia e, talvez o mais importante, cuja transição interna era de seu conhecimento. Está nos praças e nos oficiais subalternos a sua força dentro da caserna. Não parecia ter muita aderência entre os oficiais superiores. Não se elegeria tantas vezes ao cargo de deputado federal se não tivesse uma base sólida a dar sustentação às suas pretensões políticas.

    Mas viremos a própria mesa. Como fui criado em boa parte da infância em Santa Cruz (meu pai servia na base aérea de Santa Cruz), zona Oeste do Rio de Janeiro (o outro Rio de Janeiro que não sai nas fotos), e mantive algumas relações por lá, mesmo depois de adulto, não é novidade a ligação de muitos militares, a maioria da reserva, incorporando-se, como ocorreu com a polícia militar local, no esquema das milícias. Acredito que esse esquema é, em grande medida, responsável por muitos dos votos recebidos por Bolsonaro. Também não é novidade para mim, que alguns compunham até o equipes de segurança de chefes de facções ligadas ao tráfico de drogas (bicos?). Eu mesmo tive amigos que morreram em briga com garimpeiros por conta da sua atividade paralela (contrabando de ouro e pedras preciosas) em Boa Vista (Roraima). Jair Bolsonaro, vale lembrar, garimpava. Para quem estava na caserna isso soava normal ("complementar rendas"). Nenhuma novidade representava as notícias dando conta do envolvimento de militares na região amazônica com os garimpeiros e mesmo com os hoje chamados povos ancestrais (hoje alvos de uma política vil - carne de piranha para interesses internacionais -  e de uma imprensa embriagada). Também intuo porque os aviões que cruzam as fronteiras não são abatidos ou controlados pelos sistema de vigilância e defesa aérea e controle de tráfego aéreo. As desculpas apresentadas à sociedade são multifacetadas, mas nenhuma delas me convence. 

    Recordo-me de uma operação sigilosa de combate ao narcotráfico e aviões na região Norte do Brasil. Todos os envolvidos participaram de um briefing de coordenação entre os diversos setores. Era tão sigiloso que não poderíamos sequer comentar com nossos familiares. Tomado pelo senso de missão que me fora apresentado, cheguei em casa e procurei esquecer da operação. Eis que, assistindo ao programa da Globo - Fantástico - a operação é noticiada em rede de cadeia nacional para todo o país (como alerta para os traficantes mais do que como notícia aos telespectadores). Espero que tenha conseguido passar a imagem correta da realidade dentro das forças. O sistema é complexo e abrangente. Afirmar contundentemente isso ou aquilo em relação ao ambiente militar tem grandes chances de conduzir ao erro. O sim e o não coexistem ali dentro. Por isso, sempre que posso, insisto na defesa institucional das forças e a defesa institucional das forças está umbilicalmente ligada à Constituição Federal e ao sistema legal pertinente. E também em fazer constantes faxinas nas instituições para expurgar quem não exercita os valores ali ainda preservados ou quem apenas finge que os tenha incorporado. 

     O valor nasce do exercício derivado das escolhas realizadas, inicialmente, em caráter individual, o que defino como conceito como algo mais próximo ao de identificação. Quando ganha corpo entre vários indivíduos, se solidifica em um ambiente social mais extenso (transforma-se em valor), por um tempo indefinido, até que a razão o descaracterize como fonte racional de percepção do que poderia ser convalidado.

    Nesse sentido, causa estranheza boa parte da sociedade, em especial a base do chamado bolsonarismo, identificá-lo como de direita e como liberal. Um exemplo que talvez esclareça a conclusão que me conduz a essa estranheza. Certa feita Bolsonaro deu uma entrevista a um jornal identificando a caserna ao comunismo, fato que no período eleitoral foi muito explorado nas redes. Ele, repito, conhece o seu eleitorado e boa parte dele provém da caserna, em especial, dos graduados (praças).

    A comparação não é de toda desprovida de realidade. Na caserna, todos usam a mesma vestimenta (farda), suas residências são réplicas umas das outras, todas iguais. O linguajar (o que se dá em qualquer outro segmento da vida social) é uniforme. O Estado é deificado e a fonte de pagamento dele provém. Isso não é uma crítica, mas uma constatação. Ao leitor, refletir sobre isso é tentar imaginar o ambiente onde Bolsonaro se criou politicamente. Outra entrevista dá conta do elogio feito ao venezuelano Chaves. Quem conhece a história de Chaves na Venezuela não pode se esquivar da corrente que jaz no subterrâneo inconsciente de um ex-militar extraído da caserna e o porquê de atingir grande parte de seus integrantes.

    Um candidato que abriga em seu gabinete pessoas ligadas à milícia, em especial, à carioca, que empresta sua força política, como o fez diversas vezes e no parlamento, às pessoas condenadas e ligadas a essa asquerosa organização paramilitar, não pode discursar sobre valores tipicamente militares, entendidos assim aqueles que se ensinam na caserna, particularmente, nas escolas de formação militar. Não faz parte da estrutura de valores militares apoiar bandidos. Ou faz? Aí a coisa pode se tornar, ao leitor, ainda mais complexa. Vista de fora.

    Um liberal jamais declararia voto em Lula, a quem o vereador Bolsonaro  reconheceu honestidade e em quem declarou expressamente o seu voto. Um combatente do comunismo não poderia discursar no parlamento em favor de José Genuíno para Ministro da defesa, o que Jair fez, então deputado federal, elogiando, inclusive, os "companheiros do PT". E então? De onde brota a confusão e qual a natureza da salada mista que Jair conseguiu promover na ordem política brasileira?

    O que eu infiro é que o elo que une a dita esquerda à dita direita no Brasil é o nacionalismo. Nacionalismo verdadeiro? É evidente que não. Mas quem o compreenderia?

    Em qual país do mundo uma aeronave militar e presidencial é apreendida com cocaína em grande proporção e somente no estrangeiro? Realmente não consigo compreender a facilidade com que o povo é ludibriado no Brasil. Parte da grande mentira consolidada está na falta de conhecimento do ambiente da caserna. A grande maioria, composta de pessoas de bem, mas, como sabemos, a grande maioria não comanda a grande maioria né? Quem pagou o pato na histórica da cocaína presidencial? Apenas o sargento. Todo o resto já foi, há muito tempo, esquecido (se é que "não lembrado" não traduz melhor a ideia que se pretende aqui externada)! O sargento, refletido no imaginário popular, passou a ser o injustiçado e, o sargento (persona coletivizada), o mesmo do imaginário popular, acompanhou essa notícia em todos os quartéis do país. Alguém já leu recruta zero? Ou conhece o sargento Pincel? Mas o sargento já foi preso e é isso que interessa no momento (diz o general).

     Aliado ao nacionalismo, outro fator parece emergir na consolidação do chamado "bolsonarismo". É o senso de inclusão encampado nos discursos de Jair aos seus eleitores militares. Foram, de fato, tanto tempo menosprezados pelo poder político, que serem lembrados e incluídos numa plataforma política de campanha arrefeceu o seu senso de pertencimento. Em se tratando de uma categoria cujos integrantes não podem ser filiados a um partido político (estou rindo por dentro), e nem se envolver diretamente em campanhas eleitorais (já estou gargalhando silenciosamente), aderir a uma voz política que possa defender os seus direitos é uma consequência política natural e previsível. Permita fazer um remendo histórico nesse atual estágio do texto: conheci o MST (Movimento dos Sem Terra) a convite de um colega de caserna filiado ao PT, colega que hoje ocupa alguma embaixada na Europa. Estou conseguindo traduzir a realidade da caserna?

    Equivoca-se grosseiramente quem imagina que seus generais, almirantes e brigadeiros não fazem política. Não pedem favores políticos e nem gozam de boas relações políticas. Será que não notam o movimento? 

    O que sustenta o voo do movimento bolsonarista no país não possui natureza exclusivamente política, mas encampa alto grau de conhecimento sobre controle psicossocial e comportamento de massa. Deu aos integrantes da caserna senso de pertencimento, de natureza grupal, não sendo necessário apontar que as escolas de formação militar, assim como em ordens religiosas, tem grande poder de cooptação psíquica de seus integrantes. São doutrinados a viver em espírito de corpo. De certa forma, todo agrupamento institucional que congrega pessoas, reunindo-as sob as bases de um código específico de valores funciona de forma similar. A hierarquia e o sistema de obediências, comuns às ordens religiosas e militares, retira de seus integrantes, em grande medida, o senso de individualidade. Isso é uma crítica? Não. Uma realidade. A hierarquia está na base de toda organização. A disciplina também. O que diferencia ordens religiosas e militares é a rigidez do método, a natureza da doutrina e a finalidade institucional. Se entro no mérito da utilidade e necessidade? Não. Há motivos que justificam tais modelos mas, o que posso dizer em relação à caserna, é que os motivos, as diretrizes e os valores, nem sempre são observadas por quem os impinge aos seus subordinados.

    Como no mito da caverna de Platão, a sociedade vislumbra sombras dançantes projetadas na paredes que sustentam o espaço escurecido onde estão acorrentados. Chamam-na caserna, associando a ideia implantada em seu imaginário com substantivos agregados. Militares são isso, as forças armadas são aquilo, alguns, pejorativamente, chamando de milicos aos militares, outros, de onde olham, acreditando na inabalável moral propalada em caráter institucional. Outros, ainda, pretendem realizar críticas infundadas, pautadas na sua ignorância sobre a instituição militar, ou, movidas por traumas de infância, por fragilidade de caráter e por não saber qual é o peso de uma Colt 45 pendurada na cintura por vinte e quatro horas ininterruptas, o que, aqui, transmuto em metáfora, para comparar com o peso que os verdadeiros militares carregam (nas costas), quando estão tutelando o voo do Deputado Federal progressista, da moça de Copacabana que foi viajar às expensas da mamãe para a Europa, do traficante ainda não descoberto, a quem interessa toda essa polêmica. 

    Quem são os verdadeiros militares? Os que não dormem para que outros possam voar em segurança, ou os oficiais da reserva remunerada enfronhados na estrutura aeroportuária privatizada em cargos de diretoria? Respondo: os que carregam no seu senso de orientação profissional o espírito militar, com os valores que aprendeu a defender. Aqueles com os quais se identificaram e que vieram a acolher por deliberada escolha pessoal. Alguns podem até ser presos por seguirem tais valores de forma incondicional por ordem de um superior hierárquico que não dê muita bola para isso. Estou conseguindo passar a imagem da complexidade que se opera na caserna?

    As chamas da realidade, fora da caverna, dançam ao som da realidade, essa melodia ainda não inteiramente traduzida pela sociedade, a quem as formas importam mais do que o conteúdo efetivo.

    Ainda que eu tenha optado pelo direito - que habita o meu espírito - não me despi de muitos dos valores que aprendi na caserna, em especial, o senso de responsabilidade e a integridade moral, a que associei, posteriormente, à honestidade intelectual. A visão obtida de dentro e de fora media meu comedimento e senso de realidade. Como se estivesse contemplando do alto de uma montanha, a uma altura suficiente e, ao mesmo tempo,  o nascer e o por do sol, as primícias da manhã à direita e as estrelas se despedindo à esquerda.

    Como ex-militar e advogado, categorias profissionais que aprendem a se digladiar desnecessariamente, unifico minha experiência na disciplina rígida pela observância à ordem legal.  Mas só consigo vislumbrar na ordem jurídica alguma legalidade, quando se assenta em valores acatados por todos, valores sem os quais a obrigatoriedade sucumbe ao que no direito é chamado de ineficácia social normativa. No popular: as leis para inglês ver.

    Na caserna costuma-se dizer que o militar é o povo de farda. Meia verdade. Na sua grande maioria, composta por gente dos rincões de todo o território nacional, gente simples e que buscou na carreira militar, não raras vezes, a cura para a fome. Isso explica Jair comendo farofa nas redes? Raciocínio cuja validade se aplica ao universo das praças e graduados. Mas há latifúndios estabelecidos em relação aos postos superiores desde o golpe militar - o começo da desgraça brasileira -  que instaurou essa república de larápios e bajuladores que prevalece até os dias de hoje. Para mim, o fato histórico mais repugnante da história do Brasil. Chamam-no de proclamação da república (chega a dar asco)!

    Espero ter conseguido ilustrar, a partir da minha experiência, o campo fértil onde o bolsonarismo plantou suas sementes. Não o único, mas um dos mais importantes. Mostrar, quem sabe, que a caserna não é um ambiente que deva ser tratado de forma simplista e uniformemente considerado. Se for possível compreender esse ambiente, será possível decifrar a realidade da base que sustenta o fenômeno e compreender sobre o fermento que fez crescer o bolo de valores mobilizados por Jair. 

    Por que escrevi este texto? 

    Porque admiro Platão. Já dormi na caverna e já dancei em volta do fogo. Esse elemento poderoso que troca a luz pela opacidade da madeira. Porque é necessário consumir um, para que o outro possa aquecer e iluminar. Porque sombras são projeções que sustentam a imaginação e fomentam o temor do desconhecido, do ignorado. Porque é só da ignorância que precisamos nos libertar.

    Até a próxima! Se a Providência permitir.

    

    

segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

Do cavalo de Troia ao homem universal ou a superação do homem de Troia dos dias atuais.

     Após um intervalo considerável entre a derradeira matéria aqui escrita (31/01/2018) e a sucessão de eventos que se operou na realidade do ambiente político nacional, Genetriz Estatal retorna às suas atividades com energia renovada no sentido de contribuir com o fluxo de ideias que vagueia em rede nessa desordenada ferramenta tecnológica por onde navegam, tanto os barcos com bandeiras conhecidas, quanto navios piratas em busca do cortejo bandoleiro, do cotejo de tesouros inexistentes ou de aventuras fáceis, pois, até mesmo a liturgia poética, aquela que predizia que "navegar é preciso, viver não é preciso", transformada por Petrarca num memorial a Pompeu, foi cooptada pelo contrabando da originalidade, desmontada sem critérios, cujo objetivo maior foi, antes de tudo, promover o desmanche dos padrões de verdades históricas para fomentar o comércio de mentiras forjadas e adaptadas aos novos tempos. Quem diz isso sou eu, diz o que garante que a garantia soy yo.

     Quase quatro anos após a última publicação, registrada sob o titulo "Indagações políticas em ano eleitoral e sobre os anéis dos senhores", vim a relê-la tentando me recordar se houvera atingido o meu intento de apontar quais dos anéis e de quais senhores poderia eu estar a me referenciar quando a publiquei. Hoje, pareceu-me mais claro que o acerto, pode-se dizer, é possível de admitir. Ainda que não saiba quais dos senhores possam ter de fato sentido os efeitos do que pretendi suscitar.

     Recentemente recebi, em caráter experimental - gesto nascido de um vácuo entre um "por quê não?" meio desesperado e um "que tal aproveitar as sobras do almoço passado?" - um esboço de um livro reunindo as matérias publicadas nesse blog despretensioso, mas muito metido a besta quando a questão circunda a análise do que é, de fato, óbvio. O que é o óbvio, primeiro objeto de qualquer análise, foi antes limado aos extremos. A ideia do que é óbvio não pode ficar ao sabor dos ventos e se os ventos se alteram por fatores múltiplos, por alterações dos centros de pressão, pela dança termodinâmica sinalizada por líquidos mercuriais inseridos hermeticamente em termômetros mais ou menos fidedignos, emprestemos a cada um dos óbvios possíveis os seus respectivos nexos de causalidade. 

     O meu incentivador é meu filho, o que me fez filtrar o incentivo com o olhar de, além de pai, pessoa mais velha. Mas não é tão simples assim. Ele possui um repertório informativo invejável. É meu iniciador em teoria da informação, tem dois mestrados, dois cursos de graduação, uma daquelas pessoas com a qual posso contar antes de adquirir um livro, indagando se ele o tem ou já o leu. Mais do que isso: autonomia racional que transcende a qualquer título acadêmico que possa haver conquistado. Mas, ainda assim, menos idade e, possivelmente, menos experiência.

     Ao reler os textos, o que mais me chamou a atenção foi o grau de previsibilidade a que as reflexões conduziam. Boa parte das probabilidades com as quais brinquei de fato ocorreram e foram escritas tempos anteriores as suas respectivas e efetivas ocorrências. Agora posso me autoproclamar profeta da vida nacional, não por haver escrutinado o futuro (daquela época, que é  um dos "hojes" possíveis) inspiradas por uma divindade qualquer, mas por relevar em minhas considerações e ironias o que é óbvio. Obviamente óbvio, se é que estou em alguma medida certo do que quero dizer.

     Ontem, 08/01/2023, o país experimentou, por inusitado, a tomada da bastilha, digo, a quase tomada de Brasília. Quando pensava em dar início a um novo ciclo distante da política e da vida nacional, por amor a minha sanidade mental, vi uma tomada de cena jornalística dando conta do símbolo da república assentado sobre uma cadeira que se quis supor tratar-se da cadeira da presidente do Supremo Tribunal Federal, com uma personagem dramática a segurar sobre sua cabeça uma suposta Constituição Primeva, por igual e supostamente original. 

     O fato está sendo replicado por aí, peregrina pelas redes aos picadinhos, como um estrogonofe de realidades. Ao molho candango. As versões divergem na medida em que a mão de quem manipula o caleidoscópio rodopia a seu bel-prazer a ferramenta de ver coisas esquisitas. Uma festa de imagens disformes divertem-se a espera da expectativa alheia. Em meio ao movimento, Di Cavalcanti, furado, não chegou a sangrar, lembrando-nos dos milagres operados em terras brasileiras e cujo principal efeito é, de regra, o de alterar a história do Brasil. 

     É óbvio que esse fato histórico reverteu minha decisão de jogar a política na lata do lixo da minha história. Influenciou minha decisão de voltar a escrever na e pela Genetriz Estatal, que se referencia desde o início e em seu preâmbulo como um útero maduro aguardando pela fertilização da inteligência de toda uma nação. É óbvio que a cena de gente andando sobre os prédios da Praça dos Três Poderes não é bem uma novidade. É óbvio que domingo é dia de espasmar, como é óbvio que o palácio do planalto estava vazio. É óbvio que Lula relutou por operar sua mudança para lá, temendo escutas e outras formas de espionagem à moda tupiniquim,  e que estava em Araraquara cobrando o almoço - que nunca é grátis - do prefeito Edinho, apesar de parecer óbvio que toda a imprensa e a própria Abin informaram a quem de direito sobre o risco de invasão aos prédios públicos de Brasília, especialmente, à sede de cada um dos três poderes. Também é óbvio que Bolsonaro, o bolseiro da trama desenvolvida no senhor dos anéis, se mandou para os Estados Unidos, sendo mais ou menos óbvio que, logo após a data da desordem operada na capital, exibiu-se existente e louco para não ser esquecido, postando uma foto acamado, para mexer com a memória afetiva de seus fiéis e seguidores, e, para variar, prenunciando o acúmulo fecal de natureza intestinal, que sempre caracterizou sua atuação na presidência. As cuecas borradas, ao que posso presumir, ficaram numa das muitas lavanderias em Brasília.

     Mas se todos sabiam do risco, por que não agiram para prevenir o fato? É aqui que o contrabando de peças velhas é operado para ressuscitar modelos de veículos ultrapassados no tempo, modelos que as novas gerações sequer conheceram, quando muito, apenas ouviram deles falar alguma coisa, dentre as possíveis de dizer. É previsível o que as linhas editoriais ressaltarão a partir do evento certo e previsível - e  de fato previsto -  partindo das nuances que as diferenciaram a partir do estilo por cada qual adotado, devendo ser entendida a designação a que o conceito de "estilo" remete, não como vinculada aos padrões estéticos possíveis de inferir, mas aos patrocinadores e aos seus respectivos vínculos com o poder. 

     É óbvio que a divisão do país é um imperativo categórico nacional, nos moldes preconizados por Kant. Um imperativo categórico sustentado pela manutenção da ignorância popular e por ignorância popular enquadro aqueles que o povo escolhe para o representar, pois parece, ainda no campo do estudo da obviedade, que as limitações do povo o impedem de escolher além dos limites da sua cognição possível,  sendo também óbvio que, ao transferir votos para os seus similares, limitados que são, limitam toda a chance do país alvorecer além dessa madrugada infinita que nos assola. Distanciados em Brasília (ou nas sedes dos poderes estaduais ou municipais), aproximam-se dos verdadeiros donos do poder, estejam eles sediados ou não no território nacional, coabitando o mesmo espaço, capturado e capturador, distantes da verdadeira origem que fomenta qualquer poder político, esse que, acreditam, ainda, muitos, emanar do povo, essa substantivação unificada de uma complexa diversidade desconhecida, e, portanto, fácil de enganar. 

     A operação cavalo de Troia, conhecida no imaginário popular e que rendeu expressões populares como "presente de grego", é mais antiga que andar para frente. Espertos e espartanos, fantasiados de cavalos, ainda brincam de cavalinho em solo pátrio, presenteando ao inimigo com sua invisível presença, o que, de regra, acomete o inimigo da mesma falta de criatividade, escondendo-se uns dos outros no interior de uma dose cavalar de mediocridade política,  enquanto os mais pragmáticos lucram com os desideratos da bolsa de valores, em operações cirúrgicas que enriquecem muitos dos que agora se assentam nas cadeiras de Brasília, sem muito esforço. Cadeiras lançadas do interior dos prédios do poder em claro sinal de inconformidade, programada ou não. Os mais precários buscam lucrar e lacrar com os likes nos moldes estabelecidos pelo google AdSense, na monetarização da precariedade mental que tem feito muito sucesso nas redes.

     Mas a ignorância popular, inata, permite que a confusão se instale em sua parca capacidade discernir categorias distintas de distintos problemas, sendo facilmente convencida de que, o real problema emerge da destruição de prédios públicos, quando a destruição de prédios públicos é flagrantemente precedida da destruição das instituições que a sociedade erigiu migrando de um regime de exceção para um regime que se pretendia, além de democrático, lastreado no estado de direito.

     Não se constata outra obviedade nesse modelo senão a de que a ignorância do povo não lhe permite compreender perversões lógicas que sustentarão, amanhã, a supressão de uma garantia constitucional, espécie de regra que estabelece limitações ao poder do Estado, fenômeno que já ocorre quando expressamente uma ministra do STF reconhece, ao mesmo tempo, que a censura é absolutamente vedada, mas que relativizar sua ocorrência em circunstâncias especiais, não previstas no ordenamento fundamental, faz-se necessário. A tese é acolhida de forma arbitrária e acatada no plenário da ignorância reunida na outra ponta na linha de escolhas possíveis, promovidas por pessoas incapazes de escolher qualquer coisa que seja, que implique na afetação de esferas de interesses que extrapolem a sua própria esfera existencial. Antes da destruição dos prédios, a destruição da lógica do sistema precedeu à derrocada de todo o sistema, que já dá claros sinais de que sua ruína é iminente.

     O que importa é tornar óbvias todas as obviedades e do repertório de óbvios tão ululantes quanto de possível aferição, extrai-se o de que a população foi renegada a uma condição de mitigação de sua capacidade intelectiva a um grau que beira à irreversibilidade, condição que consolida o estado de inferioridade a que a civilização brasileira passou a desfrutar, estacionada na letargia existencial, como que hipnotizada pela malícia dos representantes que elegeu, de regra, para representar contra os seus próprios interesses. Aqui não jogamos mel em urtiga para chamar coceira de cosquinha. Não desejo que prove o seu amor pela natureza deitando sobre urtigas em nome de um falso direito ambiental: no ambiente onde somente a razão cura e a informação absolve.

     Numa república de idiotas, o que poderia prosperar? Somente a decadência e o que lhe é acidental, por conexão direta com o efeito que produz, ou seja, o caos. Não o social (expressão que figura a imagem do vazio cheio de zeros ou bolinhas, para melhor compreensão). Da individualidade e da capacidade individual , referência máxima que alguém pode ter de si mesmo. No traço distintivo que nos classifica como espécie única, dentre as outras bestas na natureza: a racionalidade.

     O homem de Troia é uma paródia do cavalo de Troia, mas que ensina que não é necessário construir uma estátua em forma de cavalo para preencher de homens o seu interior, buscando se infiltrar no território inimigo. Basta introjetar no interior de homens vazios, padrões equinos de comportamento, replicá-los em sistema  e deixá-los livres para montá-los quando e onde desejar. Até participarem de sufrágios para escolher, dentre os cavalos disponíveis, o de sua preferência para representá-los. Dentre os vários currais eleitorais, um para pastar feliz. Sem sentir o peso sobre suas costas.

     Já o homem universal não permite que o seu melhor seja extraviado por forças distintas daquelas que ele próprio produziu. Não admite que lhe imponham selas nem cangas, nem arreios, nem esporas. Sofisticadas ou não. Mas é universal por haver se filiado ao constructo universal que indica que no interior de homens habitam homens reais, e que, sendo homens reais todos os homens que há, presunção que estabelece como premissa inicial de qualquer de suas relações pessoais, qualquer ofensa à vida, a liberdade, a autonomia e a razão alheia é ofensa à imagem refletida pelo arquétipo universal e padrão a qualquer forma de vida efetivamente humana. 

     Sendo a razão atributo (em tese) exclusivamente humano, a afronta à razão de qualquer homem é afronta a sua natureza e a afronta à sua natureza é sinal claro de afronta à sua dignidade. Sendo livre pode o homem universal pactuar por seus interesses e, de regra, não haverá consenso quando a ambas as partes não aproveitar ao menos algum interesse. 

     Tentar converter um homem em uma besta é pretender escravizá-lo aos limites inferiores de sua humanidade, já que, embora haja similaridade entre a besta e o homem bestial, a menor porção de razão especulada em seu íntimo já estabelece uma diferença invencível, não se havendo de presumir, aprioristicamente, que a razão do homem não pode se revoltar contra a sua consciência, porque estamos diante de conceitos distintos. Muitos homens racionais foram responsáveis por execráveis guerras e com elas, pela aplicação de seu intelecto para fins que somente uma razão invertida poderia admitir. E razão invertida é o melhor forma de explicitar a irracionalidade proporcional de um indivíduo. Seus efeitos revertem sempre em afronta à vida, à liberdade, à autonomia e à razão alheia. Quanto maior o denominador, menor será todo o resto.

     O homem universal - arquétipo perfeito de uma humanidade possível - é um homem a quem a razão serve de instrumento de sua consciência. Na vida das realidades , é possível aferir a consciência em ação quando a razão calcula que irá perder se tomar determinada ação, e ganhará se tomar decisão no sentido inverso. Ganhar fama, reconhecimento, poder temporal, etc.. O mediador entre a consciência e a razão , para quem as possui, é sempre o fator distintivo entre uma verdade e uma mentira. Poderia avançar no tema, mas minha intuição me diz que tentar superar o homem de Troia está de bom tamanho.

     Não há nada de novo em Brasília e nem no Brasil. Por quantos rompimentos institucionais o país já foi vitimado? E de todos eles, qual não teria sido causado pelo populismo, pela idolatria política e pela técnica de fazer uso da máquina estatal como meio para auferir a realização de interesses privados, vantagens particulares, por meio dos órgãos e instituições públicas?

     Numa república de homens de Troia, os indícios, os sinais, as assinaturas dos agentes que produzem ações que afetam à coletividade são previsíveis, perigosamente previsíveis. 

     Nós, restos mortais do que sobejou da epidemia cavalar que nos assolou, homens e mulheres sadios e não infectados, podemos ainda retornar à posição de cavaleiros e amazonas de nosso destino, desde que não permitamos inversões despropositadas, como a de admitir que possa o cavalo montar sobre o cavaleiro e conduzir, no páreo das probabilidades, resultados indesejados, ainda que previsíveis. Dom Quixote nos inspire às regras de cavalaria e ao heroísmo romântico que nos conduzia, com coragem, aos desígnios de nossa própria escolha.

     Os moinhos de ventos estão logo ali a frente. Conseguem ver? 

     Partamos para salvar nossa doce Dulcinéia. A democracia da razão operando livremente sob a luz de toda a consciência existente, no sentido de perceber que o que é bom para todos convida ao consenso, o que é bom somente para cada um, possui um preço de aquisição sujeito às regras de mercado.

     É vedado infringir as próprias razões e permitido, mesmo desejado, acordos entre homens e mulheres livres. 

     A priori, que o Estado se dane. Até que seja algum dia de alguma utilidade efetiva e demonstrada e não ferramenta utilizada para extorquir individualidades. 

     Quanto ao Aquiles, aquele do mito, confeccionemos um gigantesco esparadrapo para proteger todos os nossos calcanhares contra as distrações de caminhantes alheios à realidade ou distraídos.

     Que 2023 seja o ano I do homem universal nascido em terras brasileiras. São os votos da GE.