sexta-feira, 10 de fevereiro de 2023

O mito da caserna: a paródia que nem Platão ousou explicitar.

    Hoje ocorreu-me de falar sobre o fenômeno do Bolsonarismo e sua associação com a caserna, fenômeno agigantado no imaginário popular e que ganhou corpo com o advento das redes sociais. Antes preciso noticiar-me historicamente. 

    Servi às forças armadas como praça da aeronáutica por catorze anos, havendo ingressado com dezesseis anos, após ser aprovado por concurso público em uma escola de formação militar. Mas preciso alargar meu histórico para dar uma dimensão ao leitor da perspectiva que começo a construir sobre o fenômeno do Bolsonarismo no ambiente da caserna. Sou, ainda, filho de militar, passei grande período de minha infância morando numa vila militar isolada da cidade, local onde fiz grandes amizades, quase todas elas remanescendo, menos do que eu gostaria, até os dias atuais. As redes sociais facilitaram a manutenção desse contato.

    Meu desligamento se deu a pedido, após haver me formado em direito. Sai pela porta da frente e classificado no excelente comportamento (como, eu ainda não descobri). A última frase que ouvi foi na seção de investigação (inteligência), última de uma série de seções pelos quais devemos passar para obter uma espécie de quitação geral na unidade militar. Eis a frase: mais um militar competente pedindo desligamento. Nessa época, muitos colegas pediram para se desligar da força, por motivos vários. 

    Por que essa introdução me pareceu necessária? Para esclarecer ao leitor que venho de um ambiente formado por valores militares, que minha saída foi voluntária e fruto de uma opção pessoal, mas que, de outro lado, conheço um pouco do ambiente explorado politicamente por Bolsonaro e, em alguma medida, os próprios valores que são mobilizados por essa personagem na hora de implementar suas escolhas políticas.

    Quando Jair Bolsonaro deu a fatídica entrevista para a revista Veja, foi ovacionado pela grande maioria na caserna, especialmente pelos praças. É necessário, se desejar o leitor compreender o que pretendo externar, contextualizar historicamente as ocorrências. Nessa época, os militares questionavam os seus baixos salários. Ouvia-se muito a turma dizer que era injusto que um controlador de tráfico aéreo que tomava conta de um centro de controle de área (do espaço aéreo), com quase trinta anos de serviço, ganhasse menos que um copeiro do legislativo recém empossado. Cá entre nós, estavam certos. 

    Aos poucos vou complicando o contexto e apontando os paradoxos que a caserna propicia aos seus integrantes. O salário era indigno da responsabilidade assumida e ainda mais indigno se comparado à remuneração e vantagens percebidas por outros servidores de outros poderes. Se imaginam que a comparação salarial realizada pela tropa buscava reduzir a importância ou o valor percebido fora da caserna, pode esquecer. Não. A inconformidade buscava apenas denunciar a desproporcionalidade em razão da responsabilidade assumida e única e exclusivamente o reconhecimento financeiro decorrente da atividade militar. No ambiente da Aeronáutica (pois em relação às outras forças as motivações pareciam ser, similares em natureza, mas distintas em sua justificação). Sinto que vou me estender, por isso vou direto ao ponto. Alguns desconhecem essa realidade que almejo traduzir a quem, ainda,  eventualmente,  esteja a ler este texto.

    Contexto histórico e sintético: eleições diretas, nova Constituição e transição entre regimes.

    Nas primeiras eleições diretas para a presidência, dos cerca de quinze militares que compunham a minha seção, apenas dois buscavam alternativas liberais, dentre os quais eu me incluía. Dez votavam em candidatos de esquerda, dividindo-se entre Brizola e Lula, com predominância para este. O restante era centro. O que pretendo relevar nesse momento? Que a ideia de que o militar era de direita não fazia nenhum sentido para mim. Que era militar e via o que ocorria na caserna. Para que o leitor possa fazer alguma ideia, imaginem isso: lia no período de descanso, um livro cujo título era "o reizinho populista" que eu havia encomendado do Instituto Liberal. Os colegas de trabalho ironizavam a escolha por se tratar de um livreto de cunho liberal, como se fosse a coisa mais absurda do mundo. Algo muito semelhante ao que se vê nas redes, mas promovidos por adoradores da esquerda mais patológica. Na sua percepção você conseguiu imaginar a cena, sabendo que estávamos num ambiente de trabalho e militar? Nessa época eu tinha cerca de dezoito anos. Casos assim ocorriam com frequência. Ironizar a simpatia pelo liberalismo econômico sempre foi uma forma oblíqua para isolar autonomias dotadas de alguma racionalidade não grupal. Não acredita? Como eu lamento! Hoje acredito que algo tenha mudado e nem sei dizer se para melhor.

    Na questão salarial, cara aos militares (é quase um vício falar em salário na caserna), Bolsonaro uniu o muito que havia de esquerda na corporação com o quase nada que lá havia de direita. A sociedade, fora da caserna, não faz ideia do quanto isso mobiliza os militares. Aquela época, ainda mais.

    Quando saiu candidato a vereador no Rio, teve apoio da tropa, que se identificou com o argumento do desprezo que os governos da nova ordem dedicavam aos militares na questão salarial. FHC contribuiu para o acirramento dos ânimos e foi o primeiro a dividir a caserna entre praças e oficiais superiores. Modificou a Lei de Remuneração dos Militares e deu gratificações para quem tivesse cursos que só os oficiais poderiam fazer. Antes, o soldo dos praças era vinculado ao soldo do Ministro da força correspondente. Como eu disse, para entender o fenômeno do Bolsonarismo, é necessário compreender o contexto histórico e cronológico das ocorrências políticas relacionadas às forças armadas. Já o ouviu falar de FHC? Espero que tenham compreendido o objetivo que Jair buscou com sua falas. Política pura!

    Outro aspecto que merece relevância, diz respeito aos ciclos geracionais dos ingressos nas forças. Antes, para ingressar como praça por meio de concurso público, era necessário ter diploma de primeiro grau completo. Conforme as novas gerações de militares foram ingressando, o comportamento da tropa, agravado pelos baixos salários, compeliu-a a buscar no aprimoramento educacional uma saída alternativa para complementar sua renda, e, quem sabe, prestar concursos para outros cargos em outros poderes, onde se pagava melhor. Muitos saíram das forças e migraram para a estrutura de outros poderes, não por indicação política, mas por concurso público. Tenho colegas que, atualmente, estão trabalhando em vários órgãos públicos de ambos os poderes.

    Esse movimento é muito mais relevante do que pode parecer para quem lê esse texto e não conhece o ambiente da caserna. Não eram raros os casos em que um capitão, que outrora comandava um subordinado com o primeiro grau completo, tivesse que dar ordens a um subordinado com doutorado obtido na Alemanha e fluente em ao menos duas línguas estrangeiras. Isso dá uma ideia do que pretendendo explicitar ao analisar o fenômeno? Quando sai da caserna, na minha seção, deixei alguns doutores ou doutorandos, mestres ou mestrandos, quase todos com curso superior e apenas um que optou por outro caminho.

    Bolsonaro soube explorar politicamente um ambiente cujos valores dominava, cuja linguagem conhecia e, talvez o mais importante, cuja transição interna era de seu conhecimento. Está nos praças e nos oficiais subalternos a sua força dentro da caserna. Não parecia ter muita aderência entre os oficiais superiores. Não se elegeria tantas vezes ao cargo de deputado federal se não tivesse uma base sólida a dar sustentação às suas pretensões políticas.

    Mas viremos a própria mesa. Como fui criado em boa parte da infância em Santa Cruz (meu pai servia na base aérea de Santa Cruz), zona Oeste do Rio de Janeiro (o outro Rio de Janeiro que não sai nas fotos), e mantive algumas relações por lá, mesmo depois de adulto, não é novidade a ligação de muitos militares, a maioria da reserva, incorporando-se, como ocorreu com a polícia militar local, no esquema das milícias. Acredito que esse esquema é, em grande medida, responsável por muitos dos votos recebidos por Bolsonaro. Também não é novidade para mim, que alguns compunham até o equipes de segurança de chefes de facções ligadas ao tráfico de drogas (bicos?). Eu mesmo tive amigos que morreram em briga com garimpeiros por conta da sua atividade paralela (contrabando de ouro e pedras preciosas) em Boa Vista (Roraima). Jair Bolsonaro, vale lembrar, garimpava. Para quem estava na caserna isso soava normal ("complementar rendas"). Nenhuma novidade representava as notícias dando conta do envolvimento de militares na região amazônica com os garimpeiros e mesmo com os hoje chamados povos ancestrais (hoje alvos de uma política vil - carne de piranha para interesses internacionais -  e de uma imprensa embriagada). Também intuo porque os aviões que cruzam as fronteiras não são abatidos ou controlados pelos sistema de vigilância e defesa aérea e controle de tráfego aéreo. As desculpas apresentadas à sociedade são multifacetadas, mas nenhuma delas me convence. 

    Recordo-me de uma operação sigilosa de combate ao narcotráfico e aviões na região Norte do Brasil. Todos os envolvidos participaram de um briefing de coordenação entre os diversos setores. Era tão sigiloso que não poderíamos sequer comentar com nossos familiares. Tomado pelo senso de missão que me fora apresentado, cheguei em casa e procurei esquecer da operação. Eis que, assistindo ao programa da Globo - Fantástico - a operação é noticiada em rede de cadeia nacional para todo o país (como alerta para os traficantes mais do que como notícia aos telespectadores). Espero que tenha conseguido passar a imagem correta da realidade dentro das forças. O sistema é complexo e abrangente. Afirmar contundentemente isso ou aquilo em relação ao ambiente militar tem grandes chances de conduzir ao erro. O sim e o não coexistem ali dentro. Por isso, sempre que posso, insisto na defesa institucional das forças e a defesa institucional das forças está umbilicalmente ligada à Constituição Federal e ao sistema legal pertinente. E também em fazer constantes faxinas nas instituições para expurgar quem não exercita os valores ali ainda preservados ou quem apenas finge que os tenha incorporado. 

     O valor nasce do exercício derivado das escolhas realizadas, inicialmente, em caráter individual, o que defino como conceito como algo mais próximo ao de identificação. Quando ganha corpo entre vários indivíduos, se solidifica em um ambiente social mais extenso (transforma-se em valor), por um tempo indefinido, até que a razão o descaracterize como fonte racional de percepção do que poderia ser convalidado.

    Nesse sentido, causa estranheza boa parte da sociedade, em especial a base do chamado bolsonarismo, identificá-lo como de direita e como liberal. Um exemplo que talvez esclareça a conclusão que me conduz a essa estranheza. Certa feita Bolsonaro deu uma entrevista a um jornal identificando a caserna ao comunismo, fato que no período eleitoral foi muito explorado nas redes. Ele, repito, conhece o seu eleitorado e boa parte dele provém da caserna, em especial, dos graduados (praças).

    A comparação não é de toda desprovida de realidade. Na caserna, todos usam a mesma vestimenta (farda), suas residências são réplicas umas das outras, todas iguais. O linguajar (o que se dá em qualquer outro segmento da vida social) é uniforme. O Estado é deificado e a fonte de pagamento dele provém. Isso não é uma crítica, mas uma constatação. Ao leitor, refletir sobre isso é tentar imaginar o ambiente onde Bolsonaro se criou politicamente. Outra entrevista dá conta do elogio feito ao venezuelano Chaves. Quem conhece a história de Chaves na Venezuela não pode se esquivar da corrente que jaz no subterrâneo inconsciente de um ex-militar extraído da caserna e o porquê de atingir grande parte de seus integrantes.

    Um candidato que abriga em seu gabinete pessoas ligadas à milícia, em especial, à carioca, que empresta sua força política, como o fez diversas vezes e no parlamento, às pessoas condenadas e ligadas a essa asquerosa organização paramilitar, não pode discursar sobre valores tipicamente militares, entendidos assim aqueles que se ensinam na caserna, particularmente, nas escolas de formação militar. Não faz parte da estrutura de valores militares apoiar bandidos. Ou faz? Aí a coisa pode se tornar, ao leitor, ainda mais complexa. Vista de fora.

    Um liberal jamais declararia voto em Lula, a quem o vereador Bolsonaro  reconheceu honestidade e em quem declarou expressamente o seu voto. Um combatente do comunismo não poderia discursar no parlamento em favor de José Genuíno para Ministro da defesa, o que Jair fez, então deputado federal, elogiando, inclusive, os "companheiros do PT". E então? De onde brota a confusão e qual a natureza da salada mista que Jair conseguiu promover na ordem política brasileira?

    O que eu infiro é que o elo que une a dita esquerda à dita direita no Brasil é o nacionalismo. Nacionalismo verdadeiro? É evidente que não. Mas quem o compreenderia?

    Em qual país do mundo uma aeronave militar e presidencial é apreendida com cocaína em grande proporção e somente no estrangeiro? Realmente não consigo compreender a facilidade com que o povo é ludibriado no Brasil. Parte da grande mentira consolidada está na falta de conhecimento do ambiente da caserna. A grande maioria, composta de pessoas de bem, mas, como sabemos, a grande maioria não comanda a grande maioria né? Quem pagou o pato na histórica da cocaína presidencial? Apenas o sargento. Todo o resto já foi, há muito tempo, esquecido (se é que "não lembrado" não traduz melhor a ideia que se pretende aqui externada)! O sargento, refletido no imaginário popular, passou a ser o injustiçado e, o sargento (persona coletivizada), o mesmo do imaginário popular, acompanhou essa notícia em todos os quartéis do país. Alguém já leu recruta zero? Ou conhece o sargento Pincel? Mas o sargento já foi preso e é isso que interessa no momento (diz o general).

     Aliado ao nacionalismo, outro fator parece emergir na consolidação do chamado "bolsonarismo". É o senso de inclusão encampado nos discursos de Jair aos seus eleitores militares. Foram, de fato, tanto tempo menosprezados pelo poder político, que serem lembrados e incluídos numa plataforma política de campanha arrefeceu o seu senso de pertencimento. Em se tratando de uma categoria cujos integrantes não podem ser filiados a um partido político (estou rindo por dentro), e nem se envolver diretamente em campanhas eleitorais (já estou gargalhando silenciosamente), aderir a uma voz política que possa defender os seus direitos é uma consequência política natural e previsível. Permita fazer um remendo histórico nesse atual estágio do texto: conheci o MST (Movimento dos Sem Terra) a convite de um colega de caserna filiado ao PT, colega que hoje ocupa alguma embaixada na Europa. Estou conseguindo traduzir a realidade da caserna?

    Equivoca-se grosseiramente quem imagina que seus generais, almirantes e brigadeiros não fazem política. Não pedem favores políticos e nem gozam de boas relações políticas. Será que não notam o movimento? 

    O que sustenta o voo do movimento bolsonarista no país não possui natureza exclusivamente política, mas encampa alto grau de conhecimento sobre controle psicossocial e comportamento de massa. Deu aos integrantes da caserna senso de pertencimento, de natureza grupal, não sendo necessário apontar que as escolas de formação militar, assim como em ordens religiosas, tem grande poder de cooptação psíquica de seus integrantes. São doutrinados a viver em espírito de corpo. De certa forma, todo agrupamento institucional que congrega pessoas, reunindo-as sob as bases de um código específico de valores funciona de forma similar. A hierarquia e o sistema de obediências, comuns às ordens religiosas e militares, retira de seus integrantes, em grande medida, o senso de individualidade. Isso é uma crítica? Não. Uma realidade. A hierarquia está na base de toda organização. A disciplina também. O que diferencia ordens religiosas e militares é a rigidez do método, a natureza da doutrina e a finalidade institucional. Se entro no mérito da utilidade e necessidade? Não. Há motivos que justificam tais modelos mas, o que posso dizer em relação à caserna, é que os motivos, as diretrizes e os valores, nem sempre são observadas por quem os impinge aos seus subordinados.

    Como no mito da caverna de Platão, a sociedade vislumbra sombras dançantes projetadas na paredes que sustentam o espaço escurecido onde estão acorrentados. Chamam-na caserna, associando a ideia implantada em seu imaginário com substantivos agregados. Militares são isso, as forças armadas são aquilo, alguns, pejorativamente, chamando de milicos aos militares, outros, de onde olham, acreditando na inabalável moral propalada em caráter institucional. Outros, ainda, pretendem realizar críticas infundadas, pautadas na sua ignorância sobre a instituição militar, ou, movidas por traumas de infância, por fragilidade de caráter e por não saber qual é o peso de uma Colt 45 pendurada na cintura por vinte e quatro horas ininterruptas, o que, aqui, transmuto em metáfora, para comparar com o peso que os verdadeiros militares carregam (nas costas), quando estão tutelando o voo do Deputado Federal progressista, da moça de Copacabana que foi viajar às expensas da mamãe para a Europa, do traficante ainda não descoberto, a quem interessa toda essa polêmica. 

    Quem são os verdadeiros militares? Os que não dormem para que outros possam voar em segurança, ou os oficiais da reserva remunerada enfronhados na estrutura aeroportuária privatizada em cargos de diretoria? Respondo: os que carregam no seu senso de orientação profissional o espírito militar, com os valores que aprendeu a defender. Aqueles com os quais se identificaram e que vieram a acolher por deliberada escolha pessoal. Alguns podem até ser presos por seguirem tais valores de forma incondicional por ordem de um superior hierárquico que não dê muita bola para isso. Estou conseguindo passar a imagem da complexidade que se opera na caserna?

    As chamas da realidade, fora da caverna, dançam ao som da realidade, essa melodia ainda não inteiramente traduzida pela sociedade, a quem as formas importam mais do que o conteúdo efetivo.

    Ainda que eu tenha optado pelo direito - que habita o meu espírito - não me despi de muitos dos valores que aprendi na caserna, em especial, o senso de responsabilidade e a integridade moral, a que associei, posteriormente, à honestidade intelectual. A visão obtida de dentro e de fora media meu comedimento e senso de realidade. Como se estivesse contemplando do alto de uma montanha, a uma altura suficiente e, ao mesmo tempo,  o nascer e o por do sol, as primícias da manhã à direita e as estrelas se despedindo à esquerda.

    Como ex-militar e advogado, categorias profissionais que aprendem a se digladiar desnecessariamente, unifico minha experiência na disciplina rígida pela observância à ordem legal.  Mas só consigo vislumbrar na ordem jurídica alguma legalidade, quando se assenta em valores acatados por todos, valores sem os quais a obrigatoriedade sucumbe ao que no direito é chamado de ineficácia social normativa. No popular: as leis para inglês ver.

    Na caserna costuma-se dizer que o militar é o povo de farda. Meia verdade. Na sua grande maioria, composta por gente dos rincões de todo o território nacional, gente simples e que buscou na carreira militar, não raras vezes, a cura para a fome. Isso explica Jair comendo farofa nas redes? Raciocínio cuja validade se aplica ao universo das praças e graduados. Mas há latifúndios estabelecidos em relação aos postos superiores desde o golpe militar - o começo da desgraça brasileira -  que instaurou essa república de larápios e bajuladores que prevalece até os dias de hoje. Para mim, o fato histórico mais repugnante da história do Brasil. Chamam-no de proclamação da república (chega a dar asco)!

    Espero ter conseguido ilustrar, a partir da minha experiência, o campo fértil onde o bolsonarismo plantou suas sementes. Não o único, mas um dos mais importantes. Mostrar, quem sabe, que a caserna não é um ambiente que deva ser tratado de forma simplista e uniformemente considerado. Se for possível compreender esse ambiente, será possível decifrar a realidade da base que sustenta o fenômeno e compreender sobre o fermento que fez crescer o bolo de valores mobilizados por Jair. 

    Por que escrevi este texto? 

    Porque admiro Platão. Já dormi na caverna e já dancei em volta do fogo. Esse elemento poderoso que troca a luz pela opacidade da madeira. Porque é necessário consumir um, para que o outro possa aquecer e iluminar. Porque sombras são projeções que sustentam a imaginação e fomentam o temor do desconhecido, do ignorado. Porque é só da ignorância que precisamos nos libertar.

    Até a próxima! Se a Providência permitir.

    

    

segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

Do cavalo de Troia ao homem universal ou a superação do homem de Troia dos dias atuais.

     Após um intervalo considerável entre a derradeira matéria aqui escrita (31/01/2018) e a sucessão de eventos que se operou na realidade do ambiente político nacional, Genetriz Estatal retorna às suas atividades com energia renovada no sentido de contribuir com o fluxo de ideias que vagueia em rede nessa desordenada ferramenta tecnológica por onde navegam, tanto os barcos com bandeiras conhecidas, quanto navios piratas em busca do cortejo bandoleiro, do cotejo de tesouros inexistentes ou de aventuras fáceis, pois, até mesmo a liturgia poética, aquela que predizia que "navegar é preciso, viver não é preciso", transformada por Petrarca num memorial a Pompeu, foi cooptada pelo contrabando da originalidade, desmontada sem critérios, cujo objetivo maior foi, antes de tudo, promover o desmanche dos padrões de verdades históricas para fomentar o comércio de mentiras forjadas e adaptadas aos novos tempos. Quem diz isso sou eu, diz o que garante que a garantia soy yo.

     Quase quatro anos após a última publicação, registrada sob o titulo "Indagações políticas em ano eleitoral e sobre os anéis dos senhores", vim a relê-la tentando me recordar se houvera atingido o meu intento de apontar quais dos anéis e de quais senhores poderia eu estar a me referenciar quando a publiquei. Hoje, pareceu-me mais claro que o acerto, pode-se dizer, é possível de admitir. Ainda que não saiba quais dos senhores possam ter de fato sentido os efeitos do que pretendi suscitar.

     Recentemente recebi, em caráter experimental - gesto nascido de um vácuo entre um "por quê não?" meio desesperado e um "que tal aproveitar as sobras do almoço passado?" - um esboço de um livro reunindo as matérias publicadas nesse blog despretensioso, mas muito metido a besta quando a questão circunda a análise do que é, de fato, óbvio. O que é o óbvio, primeiro objeto de qualquer análise, foi antes limado aos extremos. A ideia do que é óbvio não pode ficar ao sabor dos ventos e se os ventos se alteram por fatores múltiplos, por alterações dos centros de pressão, pela dança termodinâmica sinalizada por líquidos mercuriais inseridos hermeticamente em termômetros mais ou menos fidedignos, emprestemos a cada um dos óbvios possíveis os seus respectivos nexos de causalidade. 

     O meu incentivador é meu filho, o que me fez filtrar o incentivo com o olhar de, além de pai, pessoa mais velha. Mas não é tão simples assim. Ele possui um repertório informativo invejável. É meu iniciador em teoria da informação, tem dois mestrados, dois cursos de graduação, uma daquelas pessoas com a qual posso contar antes de adquirir um livro, indagando se ele o tem ou já o leu. Mais do que isso: autonomia racional que transcende a qualquer título acadêmico que possa haver conquistado. Mas, ainda assim, menos idade e, possivelmente, menos experiência.

     Ao reler os textos, o que mais me chamou a atenção foi o grau de previsibilidade a que as reflexões conduziam. Boa parte das probabilidades com as quais brinquei de fato ocorreram e foram escritas tempos anteriores as suas respectivas e efetivas ocorrências. Agora posso me autoproclamar profeta da vida nacional, não por haver escrutinado o futuro (daquela época, que é  um dos "hojes" possíveis) inspiradas por uma divindade qualquer, mas por relevar em minhas considerações e ironias o que é óbvio. Obviamente óbvio, se é que estou em alguma medida certo do que quero dizer.

     Ontem, 08/01/2023, o país experimentou, por inusitado, a tomada da bastilha, digo, a quase tomada de Brasília. Quando pensava em dar início a um novo ciclo distante da política e da vida nacional, por amor a minha sanidade mental, vi uma tomada de cena jornalística dando conta do símbolo da república assentado sobre uma cadeira que se quis supor tratar-se da cadeira da presidente do Supremo Tribunal Federal, com uma personagem dramática a segurar sobre sua cabeça uma suposta Constituição Primeva, por igual e supostamente original. 

     O fato está sendo replicado por aí, peregrina pelas redes aos picadinhos, como um estrogonofe de realidades. Ao molho candango. As versões divergem na medida em que a mão de quem manipula o caleidoscópio rodopia a seu bel-prazer a ferramenta de ver coisas esquisitas. Uma festa de imagens disformes divertem-se a espera da expectativa alheia. Em meio ao movimento, Di Cavalcanti, furado, não chegou a sangrar, lembrando-nos dos milagres operados em terras brasileiras e cujo principal efeito é, de regra, o de alterar a história do Brasil. 

     É óbvio que esse fato histórico reverteu minha decisão de jogar a política na lata do lixo da minha história. Influenciou minha decisão de voltar a escrever na e pela Genetriz Estatal, que se referencia desde o início e em seu preâmbulo como um útero maduro aguardando pela fertilização da inteligência de toda uma nação. É óbvio que a cena de gente andando sobre os prédios da Praça dos Três Poderes não é bem uma novidade. É óbvio que domingo é dia de espasmar, como é óbvio que o palácio do planalto estava vazio. É óbvio que Lula relutou por operar sua mudança para lá, temendo escutas e outras formas de espionagem à moda tupiniquim,  e que estava em Araraquara cobrando o almoço - que nunca é grátis - do prefeito Edinho, apesar de parecer óbvio que toda a imprensa e a própria Abin informaram a quem de direito sobre o risco de invasão aos prédios públicos de Brasília, especialmente, à sede de cada um dos três poderes. Também é óbvio que Bolsonaro, o bolseiro da trama desenvolvida no senhor dos anéis, se mandou para os Estados Unidos, sendo mais ou menos óbvio que, logo após a data da desordem operada na capital, exibiu-se existente e louco para não ser esquecido, postando uma foto acamado, para mexer com a memória afetiva de seus fiéis e seguidores, e, para variar, prenunciando o acúmulo fecal de natureza intestinal, que sempre caracterizou sua atuação na presidência. As cuecas borradas, ao que posso presumir, ficaram numa das muitas lavanderias em Brasília.

     Mas se todos sabiam do risco, por que não agiram para prevenir o fato? É aqui que o contrabando de peças velhas é operado para ressuscitar modelos de veículos ultrapassados no tempo, modelos que as novas gerações sequer conheceram, quando muito, apenas ouviram deles falar alguma coisa, dentre as possíveis de dizer. É previsível o que as linhas editoriais ressaltarão a partir do evento certo e previsível - e  de fato previsto -  partindo das nuances que as diferenciaram a partir do estilo por cada qual adotado, devendo ser entendida a designação a que o conceito de "estilo" remete, não como vinculada aos padrões estéticos possíveis de inferir, mas aos patrocinadores e aos seus respectivos vínculos com o poder. 

     É óbvio que a divisão do país é um imperativo categórico nacional, nos moldes preconizados por Kant. Um imperativo categórico sustentado pela manutenção da ignorância popular e por ignorância popular enquadro aqueles que o povo escolhe para o representar, pois parece, ainda no campo do estudo da obviedade, que as limitações do povo o impedem de escolher além dos limites da sua cognição possível,  sendo também óbvio que, ao transferir votos para os seus similares, limitados que são, limitam toda a chance do país alvorecer além dessa madrugada infinita que nos assola. Distanciados em Brasília (ou nas sedes dos poderes estaduais ou municipais), aproximam-se dos verdadeiros donos do poder, estejam eles sediados ou não no território nacional, coabitando o mesmo espaço, capturado e capturador, distantes da verdadeira origem que fomenta qualquer poder político, esse que, acreditam, ainda, muitos, emanar do povo, essa substantivação unificada de uma complexa diversidade desconhecida, e, portanto, fácil de enganar. 

     A operação cavalo de Troia, conhecida no imaginário popular e que rendeu expressões populares como "presente de grego", é mais antiga que andar para frente. Espertos e espartanos, fantasiados de cavalos, ainda brincam de cavalinho em solo pátrio, presenteando ao inimigo com sua invisível presença, o que, de regra, acomete o inimigo da mesma falta de criatividade, escondendo-se uns dos outros no interior de uma dose cavalar de mediocridade política,  enquanto os mais pragmáticos lucram com os desideratos da bolsa de valores, em operações cirúrgicas que enriquecem muitos dos que agora se assentam nas cadeiras de Brasília, sem muito esforço. Cadeiras lançadas do interior dos prédios do poder em claro sinal de inconformidade, programada ou não. Os mais precários buscam lucrar e lacrar com os likes nos moldes estabelecidos pelo google AdSense, na monetarização da precariedade mental que tem feito muito sucesso nas redes.

     Mas a ignorância popular, inata, permite que a confusão se instale em sua parca capacidade discernir categorias distintas de distintos problemas, sendo facilmente convencida de que, o real problema emerge da destruição de prédios públicos, quando a destruição de prédios públicos é flagrantemente precedida da destruição das instituições que a sociedade erigiu migrando de um regime de exceção para um regime que se pretendia, além de democrático, lastreado no estado de direito.

     Não se constata outra obviedade nesse modelo senão a de que a ignorância do povo não lhe permite compreender perversões lógicas que sustentarão, amanhã, a supressão de uma garantia constitucional, espécie de regra que estabelece limitações ao poder do Estado, fenômeno que já ocorre quando expressamente uma ministra do STF reconhece, ao mesmo tempo, que a censura é absolutamente vedada, mas que relativizar sua ocorrência em circunstâncias especiais, não previstas no ordenamento fundamental, faz-se necessário. A tese é acolhida de forma arbitrária e acatada no plenário da ignorância reunida na outra ponta na linha de escolhas possíveis, promovidas por pessoas incapazes de escolher qualquer coisa que seja, que implique na afetação de esferas de interesses que extrapolem a sua própria esfera existencial. Antes da destruição dos prédios, a destruição da lógica do sistema precedeu à derrocada de todo o sistema, que já dá claros sinais de que sua ruína é iminente.

     O que importa é tornar óbvias todas as obviedades e do repertório de óbvios tão ululantes quanto de possível aferição, extrai-se o de que a população foi renegada a uma condição de mitigação de sua capacidade intelectiva a um grau que beira à irreversibilidade, condição que consolida o estado de inferioridade a que a civilização brasileira passou a desfrutar, estacionada na letargia existencial, como que hipnotizada pela malícia dos representantes que elegeu, de regra, para representar contra os seus próprios interesses. Aqui não jogamos mel em urtiga para chamar coceira de cosquinha. Não desejo que prove o seu amor pela natureza deitando sobre urtigas em nome de um falso direito ambiental: no ambiente onde somente a razão cura e a informação absolve.

     Numa república de idiotas, o que poderia prosperar? Somente a decadência e o que lhe é acidental, por conexão direta com o efeito que produz, ou seja, o caos. Não o social (expressão que figura a imagem do vazio cheio de zeros ou bolinhas, para melhor compreensão). Da individualidade e da capacidade individual , referência máxima que alguém pode ter de si mesmo. No traço distintivo que nos classifica como espécie única, dentre as outras bestas na natureza: a racionalidade.

     O homem de Troia é uma paródia do cavalo de Troia, mas que ensina que não é necessário construir uma estátua em forma de cavalo para preencher de homens o seu interior, buscando se infiltrar no território inimigo. Basta introjetar no interior de homens vazios, padrões equinos de comportamento, replicá-los em sistema  e deixá-los livres para montá-los quando e onde desejar. Até participarem de sufrágios para escolher, dentre os cavalos disponíveis, o de sua preferência para representá-los. Dentre os vários currais eleitorais, um para pastar feliz. Sem sentir o peso sobre suas costas.

     Já o homem universal não permite que o seu melhor seja extraviado por forças distintas daquelas que ele próprio produziu. Não admite que lhe imponham selas nem cangas, nem arreios, nem esporas. Sofisticadas ou não. Mas é universal por haver se filiado ao constructo universal que indica que no interior de homens habitam homens reais, e que, sendo homens reais todos os homens que há, presunção que estabelece como premissa inicial de qualquer de suas relações pessoais, qualquer ofensa à vida, a liberdade, a autonomia e a razão alheia é ofensa à imagem refletida pelo arquétipo universal e padrão a qualquer forma de vida efetivamente humana. 

     Sendo a razão atributo (em tese) exclusivamente humano, a afronta à razão de qualquer homem é afronta a sua natureza e a afronta à sua natureza é sinal claro de afronta à sua dignidade. Sendo livre pode o homem universal pactuar por seus interesses e, de regra, não haverá consenso quando a ambas as partes não aproveitar ao menos algum interesse. 

     Tentar converter um homem em uma besta é pretender escravizá-lo aos limites inferiores de sua humanidade, já que, embora haja similaridade entre a besta e o homem bestial, a menor porção de razão especulada em seu íntimo já estabelece uma diferença invencível, não se havendo de presumir, aprioristicamente, que a razão do homem não pode se revoltar contra a sua consciência, porque estamos diante de conceitos distintos. Muitos homens racionais foram responsáveis por execráveis guerras e com elas, pela aplicação de seu intelecto para fins que somente uma razão invertida poderia admitir. E razão invertida é o melhor forma de explicitar a irracionalidade proporcional de um indivíduo. Seus efeitos revertem sempre em afronta à vida, à liberdade, à autonomia e à razão alheia. Quanto maior o denominador, menor será todo o resto.

     O homem universal - arquétipo perfeito de uma humanidade possível - é um homem a quem a razão serve de instrumento de sua consciência. Na vida das realidades , é possível aferir a consciência em ação quando a razão calcula que irá perder se tomar determinada ação, e ganhará se tomar decisão no sentido inverso. Ganhar fama, reconhecimento, poder temporal, etc.. O mediador entre a consciência e a razão , para quem as possui, é sempre o fator distintivo entre uma verdade e uma mentira. Poderia avançar no tema, mas minha intuição me diz que tentar superar o homem de Troia está de bom tamanho.

     Não há nada de novo em Brasília e nem no Brasil. Por quantos rompimentos institucionais o país já foi vitimado? E de todos eles, qual não teria sido causado pelo populismo, pela idolatria política e pela técnica de fazer uso da máquina estatal como meio para auferir a realização de interesses privados, vantagens particulares, por meio dos órgãos e instituições públicas?

     Numa república de homens de Troia, os indícios, os sinais, as assinaturas dos agentes que produzem ações que afetam à coletividade são previsíveis, perigosamente previsíveis. 

     Nós, restos mortais do que sobejou da epidemia cavalar que nos assolou, homens e mulheres sadios e não infectados, podemos ainda retornar à posição de cavaleiros e amazonas de nosso destino, desde que não permitamos inversões despropositadas, como a de admitir que possa o cavalo montar sobre o cavaleiro e conduzir, no páreo das probabilidades, resultados indesejados, ainda que previsíveis. Dom Quixote nos inspire às regras de cavalaria e ao heroísmo romântico que nos conduzia, com coragem, aos desígnios de nossa própria escolha.

     Os moinhos de ventos estão logo ali a frente. Conseguem ver? 

     Partamos para salvar nossa doce Dulcinéia. A democracia da razão operando livremente sob a luz de toda a consciência existente, no sentido de perceber que o que é bom para todos convida ao consenso, o que é bom somente para cada um, possui um preço de aquisição sujeito às regras de mercado.

     É vedado infringir as próprias razões e permitido, mesmo desejado, acordos entre homens e mulheres livres. 

     A priori, que o Estado se dane. Até que seja algum dia de alguma utilidade efetiva e demonstrada e não ferramenta utilizada para extorquir individualidades. 

     Quanto ao Aquiles, aquele do mito, confeccionemos um gigantesco esparadrapo para proteger todos os nossos calcanhares contra as distrações de caminhantes alheios à realidade ou distraídos.

     Que 2023 seja o ano I do homem universal nascido em terras brasileiras. São os votos da GE.





quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

Indagações políticas em ano eleitoral e sobre o anel dos senhores.

     Após um breve intervalo, retornamos em ano eleitoral para externar, na qualidade de espaço voltado à promoção do debate sobre a figura do Estado, algumas questões que, entendemos, podem ser úteis aos nossos leitores para contribuir com sua reflexões no processo de escolha de seus representantes, quando exercitarão na plenitude a democracia em que, não apenas estão inseridos, mas agem na condição de agentes de transformação no processo de aprimoramento constante dessa figura nominada Estado.
     Não temos a pretensão, nem mesmo indireta, de convencer ninguém acerca do objeto de sua escolha e nem nos prestamos a cabo eleitoral de quem quer que seja. Nossa missão é apontar aspectos que eventualmente possam ter sido desconsiderados pelos leitores, especialmente no que tange à concepção sistêmica abstraída da Constituição Federal, fundamento e fonte constitutiva do Estado brasileiro, recordando de sua opção pelo sistema federativo, pela adoção do Estado democrático de direito, pelo princípio da democracia, pluripartidarismo e liberdades, dentre outras, a de expressar opiniões.
     A primeira observação que relevamos  nesse processo de estruturação do Estado, através de uma Constituição escrita (instrumento jurídico) é a de que estamos diante de um sistema. Inserimo-nos no rol das sociedades modernas quando as flexões negativas ou positivas de comportamento estão balizadas por regras (constitucionais), que numa visão simplista pode estar representada pela legalidade, expressa no texto constitucional como "ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei" (Art. 5º, II da C.F.). É importante ressaltar que todas as regras constantes do art. 5º da Constituição Federal são consideradas limitações constitucionais. A expressão "limitações", nesse contexto, tem como destinatário o próprio Estado formado, e, por consequência, o próprio poder que surgiu após a promulgação da Carta Fundamental de 1988. Em outras palavras, são normas voltadas para os detentores do poder no exercício de uma competência estabelecida pela própria norma fundamental. Ali estão contidas normas que, no arroz com feijão, querem dizer: nessas matérias (ou temas, ou direitos) querido poder, você não pode meter o bedelho.
     Essas regras de limitação foram estabelecidas pela presunção do legislador constituinte originário (Assembleia Legislativa Constituinte), ou seja, pelo grupo que foi eleito exatamente para elaborar uma nova ordem valores, após ultrapassado o tempo da ordem anteriormente vigente (regime militar), de que o poder e o seu exercício costumam balançar a cabeça dos eleitos e dos ocupantes de cargos públicos, enlouquecendo-os,  inflando egos e distorcendo o propósito político consignado no texto elaborado pelos representantes do povo, algo que foi muito bem representado pelo escritor britânico J. R. R. Tolkien em sua obra que, traduzida para o português é conhecida por nós como "O senhor dos anéis". O poder do anel, aqui representado pelo cargo público, coloca em cheque a idoneidade de seu usuário. A conexão entre o anel e o ego de quem o detém, na obra citada, é patente. Sabendo disso, pelo processo histórico da humanidade, o legislador constituinte retirou da esfera do poder do anel, todas as normas contidas, dentre outras, no artigo 5º da Constituição Federal. Alguns pensam que o exercício do poder é um casamento, e confundem o anel com uma aliança (até que a morte os separe).
     Como não pretendemos nos estender nesse texto, ressaltando a ideia de sistema, em que medida compreendemos a regra do jogo? Pensemos como pensa o analista de sistemas quando vai testar o software cujo algoritmo  ajudou a formular. Uma vez posto em movimento o sistema, não importa ao usuário, para quem é voltado o sistema, o que ele acha mais correto, mas o que o sistema considera mais correto. Compreender a rotina lógica do sistema é estar apto para usá-lo com a máxima eficiência possível.  Nesse sentido, durante esse período, ponderaremos sobre  algumas formulações que parecem estar na pauta de muitos candidatos. Começaremos com o tamanho do Estado:

1) Tamanho do Estado: antes de discutir acerca do tamanho ideal do Estado, cumpre ressaltar que sua dimensão é previamente estabelecida pela Constituição Federal, por regras explícitas e implícitas. Indagar aos nossos os candidatos, sobretudo aqueles que querem alterar o "tamanho do Estado" implica em exigir deles a resposta as seguinte perguntas: Como? Por meio de Emendas Constitucionais (quando necessário)? Sem alterar as chamadas cláusulas pétreas? Seu partido tem sustentação nas casas legislativas para a aprovação da Emenda Constitucional? Qual a sua base de sustentação? Vai precisar coligar com partidos que não compartilham dos princípios defendidos pelo seu partido? Isso comprometerá os valores consignados no seu programa de governo? Como lidará com o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada e como reorganizará as finanças públicas a partir das alterações prometidas? Quanto tempo demorará o processo de transformação iniciada a partir da eleição e qual o custo financeiro disso (relação de custo e benefício demonstradas, não apenas alardeadas).
     Sem essas respostas básicas, propostas empreendidas nesse sentido (para aumentar ou diminuir o "tamanho do Estado") são meras retóricas esvaídas de possibilidade real, portanto, reles promessas inexecutáveis  de campanha. 
     Nós, da Genetriz Estatal, entendemos que antes de definir o tamanho do Estado precisamos discutir o papel do Estado. 
     Em linhas gerais a participação do Estado deve estar afinada com a ideia de sua finalidade essencial, promover o bem comum, e , por comum, entendemos estarem abrangidas apenas as questões e problemas que, no plano nacional, realmente dizem respeito a todos, não a segmentos e parcelas econômicas ou sociais estratificadas de forma caótica e acriteriosamente. 
     Isso exige muito estudo, método e organização, ambos, o que é desejável, realizado nas bases partidárias e de acordo com os princípios defendidos por cada partido. Convencer o eleitor de que  isso ou aquilo deva estar sob a égide de uma atividade estatal deveria vir precedido de um estudo prévio realizado dentro de cada partido,  discutido de forma organizada por todos os seus filiados, para que os argumentos utilizados para defender a ideia fossem legitimados por todos os participantes do partido, nos termos do seu estatuto, antes de ser verbalizado como bandeira política. Para isso seria necessário acabar com praxe política de fixar coronéis regionais nas bases partidárias. Seria preciso, em outras linhas, democratizar os partidos políticos que nos representam em nosso sistema "democrático". Alternância como resultado da melhor ideia ou solução debatida internamente, sem pessoalidades despropositadas. A ideia sobre a pessoa.
     Na sociedade moderna, a base de qualquer alteração é, antes de tudo, política e, como nosso sistema é fundamentado no pluripartidarismo e na liberdade política,  seria de bom alvitre questionar com mais seriedade a fidelidade partidária. Candidatos migram de partido em partido porque estão submetidos ao poder do anel que cobiçam, quando as ideias, princípios e valores é que deveriam ter maior relevância no processo de identificação dos fatores causativos das afiliações partidárias.
     Do contrário, continuaremos a ver políticos socialistas privilegiando a iniciativa privada, ou, pelo contrário, partidos liberais defendo fundos partidários e a defesa do aumento desarrazoado de tributos. Continuaremos a eleger moralistas que integraram partidos citados pela operação lava a jato sem nunca terem depurado a corrupção dentro do próprio partido pelo qual se elegeu. Continuaremos a eleger pessoas que não se interessam pelas ideias que o seu partido fez congregar para captar afiliados afinados com valores e princípios. Senhores desejosos pelo anel, mais nada.
     Ficamos por aqui esperando haver contribuído em algum grau para o aprimoramento de nossa democracia e para compreensão do sistema que subsidia a figura abstrata que o Estado faz sugerir, mas que, implementada de forma distorcida, pode estar representando uma verdadeira anarquia, propositalmente mantida sob as vestes de uma democracia. Futuramente traremos novas questões para reflexão. 
     Que São Frodo Bolseiro nos proteja!
     O verdadeiro anel somos nós circulando sobre nossa realidade. Sejamos livres para circular.

    

segunda-feira, 27 de março de 2017

Previdência social: o nada sobre o qual depositamos toda a nossa esperança.

     Muito se tem discutido sobre a reforma da previdência social, modelos ideais e crise gerencial no sistema. A questão é séria, relevante e deve mesmo ser debatida pela sociedade, uma vez que é a principal financiadora do sistema.
     Resolvemos escrever algumas linhas, mas temos consciência de que o tema é complexo ou que se tornou complexo ao longo dos tempo. Por vício irremediável, buscamos compreender a raiz do problema para saber se, uma vez identificada, as soluções apresentadas pelas mídias sociais e profissionais da área fazem identificar de forma indelével o problema que tem em seu objeto a seguridade social, expressão que abrange em seu ambiente sistêmico a saúde, a previdência e a assistência social. 
    Criada há muito tempo, numa época em que as chamada grandes guerras mundiais geraram sequelas na ordem populacional do planeta, sob o prisma quantitativo e qualitativo, com influência no tempo médio de vida das pessoas, na demanda por soluções relacionadas com a saúde (doenças e sequelas pós-guerras) e diante do forte impacto gerado na economia das nações, foi capitaneada, em regra, pelos Estados, dado o forte impacto causado pela alteração significativa do panorama populacional do mundo. 
     Após várias transformações, especialmente no Brasil, a relação previdenciária foi sendo instituída na cultura nacional e, juridicamente formulada, passou-se a institucionalizar a ideia que, em sua dimensão básica, parte do princípio de que era necessário criar um modelo de natureza securitária que preservasse, diante das hipóteses circunstanciais, tais como morte, doença, idade avançada etc., um sistema que subsidiasse as pessoas com o mínimo necessário para manter-se economicamente.
     O que há de fatídico no fenômeno de sua criação é que tanto a população quanto a expectativa de vida das pessoas  eram consideravelmente menores. Estamos falando de números. O sistema de produção, ainda que em franca evolução, era outro, menos diversificado, gerado sob uma base de custos mais onerosa, não implicando nessa onerosidade, que a remuneração dos trabalhadores repercutissem no passivo de forma tão significativa assim. 
     O discurso governista e o de quem pretende demonstrar a necessidade de reformulação da previdência se pauta exatamente nos fatores "expectativa de vida" e "aumento populacional" , sobretudo dos contribuintes que operam integrados no sistema que, de acordo com a Constituição Federal, é financiado também pelo Estado e pela sociedade. A essência purista de sua ideologia pode ser resumida no compartilhamento de todos para o bem de todos, na medida de sua participação no sistema e na contrapartida social onerosa no plano de contas de quem detém os meios de produção. Somos, até aqui, números.
     A Constituição alargou o número de beneficiários, mas não elaborou correta e igualitariamente a solução sobre o sistema que determina a fonte e o custeio previdenciários. Melhor dizendo, securitário, já que agora, estamos falando de seguridade social, onde a previdência, ao lado da saúde e assistência social, passaram pela forma do sistema tripartite de sua configuração. Aumentou-se os beneficiários sem a contrapartida da adequação da arrecadação, cumprindo sempre lembrar que o INSS - Instituto Nacional da Seguridade Social - é uma autarquia, portanto, com autonomia econômica e gerencial para manter-se eficaz nos fins constitucionais que determinaram a sua existência. 
     Não diz o governo nada sobre os devedores intocáveis das contribuições sociais (dentre os quais muitas empresas governamentais das diversas esferas de poder, bancos, grandes empresas, etc), do fluxo de capital e de caixa operados até o presente momento, das normas que direta ou indiretamente reduziram ao setor produtivo, ora a alíquota, ora  a base de cálculo de incidência das contribuições, ora, ainda, o nível de vinculação das receitas derivadas do sistema previdenciário. Não comenta, ainda, a famigerada CPMF, criada originalmente para suprir o déficit orçamentário da saúde, um dos segmentos de que se constitui a, hoje, seguridade social. Qual foi o seu resultado e que impacto teve na tentativa de solucionar o problema? Não sabemos. Nós e o TCU. Poucos de nós sabem, ainda,  que uma das fontes de receita para o custeio da seguridade provém das loterias federais.
   Não demonstra o governo o desacerto entre a promessa de uma saúde de qualidade, com os mecanismos de controle das verbas orçamentárias repassadas à entidades de saúde. Duvidamos, inclusive, que o chamado SUS - Sistema Único de Saúde - possa ser explicado à sociedade numa palestra de meia hora, ainda que apenas para dar uma ideia do que é e como se movimenta a sua estrutura. É complexo, isento de qualquer ferramenta capaz de implementar, ainda que minimamente, qualquer transparência. Não se explica os baixos valores pagos a intervenções cirúrgicas, exames médicos (qualquer que seja o seu grau de complexidade e custo) , o que, como há décadas demonstra a imprensa, dá ensejo  à fraudes na elaboração tanto do custeio quanto dos repasses das verbas públicas. Como esse ponto é mais complexo, basta-nos dizer que estamos diante da casa da mãe Joana. Todo mundo abocanha todo mundo e ninguém sabe outra coisa senão que cada vez mais o passivo do sistema é evidente sem a contrapartida do serviço de qualidade prometido. Por envolver o ente federal, os estaduais e municipais, envolve, também, as constantes transferências de responsabilidades de ambos. A regra é um ente jogar a responsabilidade para o outro.
     Qualquer que seja o grau de complexidade, artificialmente produzido pelo próprio Estado e por quem fatura muito dinheiro com a total ausência de controle das verbas alocadas para cada um dos segmentos da seguridade, o fato inexoravelmente notado é o de que o Estado é incapaz de gerir honesta e eficientemente o sistema previdenciário. Não falaremos do fator corrupção, porque não há, hoje,  quem já, de plano, não insira nas considerações gerenciais o percentual da sacanagem. Custo marginal, diriam alguns. A seguridade social é um discurso que produz uma imagem e traga a riqueza de toda uma nação. Nada tem, na prática, de direito e, muito menos, de natureza constitucional. Um buraco negro, pestilento e sem fim. O abismo sobre o qual não paira a luz de santo espírito algum. 
     Agregue-se à essa relação de causa e efeito, a permissão para que as instituições financeiras instituam descontos diretos na fonte de pagamento de benefícios, os chamados empréstimos consignados. O reconhecimento de que o valor dos benefícios é baixo, aliado à permissibilidade instituída pelo governo quanto à possibilidade dos bancos empobrecerem ainda mais os beneficiários do sistema, já é, por si mesmo, uma contradição. Se foi elaborado para dar amparo na velhice ou diante de hipóteses circunstanciais (doença, invalidez, etc.) e se o próprio governo reconhece que não pode aumentar o valor dos benefícios, como admitir que as instituições financeiras abocanhem parcialmente um valor que é reconhecidamente baixo se o objetivo é social e relacionado diretamente com a ideia de amparo? Não estamos diante de um sistema de seguridade, mas de um grande negócio para quem manipula o sistema (e as suas contas) e as informações que dele se desprendem. Uma (mais uma) parceria indevida e inconstitucional entre instituições financeiras e governo. 
     Embora se fale em relação atuarial de valores, uma vez que o valor monetário deve ser preservado, como determina a Constituição Federal, com exceção de  alguns segmentos privilegiados e suas pensões e aposentadorias igualmente diferenciadas, nenhum brasileiro, ao gozar do benefício, identifica essa paridade monetária entre aquilo que pagou e aquilo que recebeu. Se o fizesse estaria indubitavelmente louco. Qualquer investimento remunera o seu investidor, mas todos os valores previdenciários não são aplicados de forma a promover o retorno do investimento de forma adequada. A seguridade, é, então, uma máquina de empobrecer contribuintes. Chamar de benefício as migalhas resultantes do investimento do segurado somente é admitido por um eufemismo extraordinário, o chamado eufemismo político ou venenoso. 
        Vincular os benefícios ao salário mínimo é tornar, quando da reformulação da política salarial do governo, o que era para ser um direito, uma grande desculpa para manter o salário mínimo aos patamares risíveis de hoje. Diz a besta governamental: não posso aumentar o salário mínimo porque posso quebrar a previdência. É o mesmo que afirmar que não pode remunerar o capital investido porque criei artificialmente um porquê não fazê-lo. Um engodo. Bem elaborado, convenhamos.
      Não notamos, também, o absurdo de manter absurdas aposentadorias de agentes eleitos, de cargos comissionados, do financiamento público de aposentadorias especiais, como a de militares, juízes, promotores, e outros atores do sistema público de existir. Todos, sem discriminação de qualquer espécie, devem ingressar no mesmo e geral sistema. Somos nós que pagamos essa conta e somos nós que não usufruímos de seus benefícios. Todos se reputam especiais por algum argumento, mas não notam que  sua mesquinha ponderação, desiguala o que deveria ser igualmente tratado. Estamos falando de valores, portanto, de importâncias capitais revertidas em números e os números não mentem. No mesmo sentido, as previdências estaduais devem ser extintas. Padecem dos mesmos vícios e pelos mesmos motivos.
     Ora, se o Estado não se presta a identificar formas de realizar o bem comum, a acepção de Estado, nos dias hoje, foi dizimada, reduzida a pó e transformada em outra coisa, que se veste como Estado, parece Estado, elege-se como Estado, mas de Estado não se trata.  Se é assim, livremo-nos dessa acepção e da dura realidade que nos impinge. Estamos vivenciando uma crise, mas não apenas de natureza econômica, mas moral e/ou racional.
     Apenas para nos dirigirmos à conclusão que ora se constrói , resta falar dos custos de manutenção do sistema. Servidores públicos, peritos (concursados ou terceirizados), custos de cobrança (apenas para enumerar já que os grande devedores não são cobrados mesmo), médicos do trabalho, etc.. Acabar com o serviço estatal de previdência parece ser, em boa medida, a melhor medida a ser adotada pela sociedade.
     Nesse modelo que imaginamos, as contribuições (empregadores e empregados) permanecem (e podem ser negociadas), são depositadas numa conta especial escolhida pelo próprio beneficiário, que poderá investir na forma que achar melhor. Fundos de pensão, privados, ações,  negócios, etc. Deve-se apenas informar ao beneficiário que da sua decisão dependerá o seu próprio futuro. Modelo de pleno exercício da liberdade econômica. Ganham o beneficiário, as empresas que captaram recursos, a produção e o investimento, as bolsas de valores, o comércio, geram-se novos negócios, inclusive pelos próprios beneficiários, de quem dependerá exclusivamente a administração de seu próprio futuro econômico. Ganham os contribuintes. Até o Estado se beneficiaria com os impostos gerados com os negócios oriundos da aplicação de valores securitários nos moldes aqui imaginados
     Acaba-se com o custo de manutenção de previdência pública, os assaltos ao bolso do contribuinte, as constantes alocações de recursos sem resposta eficiente no buraco negro da previdência, falindo pilantras, sindicatos e outros cujos fluxos de interesses estão umbilicalmente ligados a quem defende a manutenção desse sistema caótico, que é a seguridade social. A DRU (desvinculação da receita da União) não afetará, tendo em conta a alta capacidade do Estado em drenar para um vazio sem fim recursos públicos, ao menos os beneficiários do sistema, nesse novo modelo.
     O Estado, hoje, é uma fábula. Ele se mantém às custas do imaginário de uma sociedade dependente, sem iniciativa e que delega a abstração gerada por si mesma, a execução de tudo e do todo que a sua vida deveria representar. Quem a escreveu ou a escreve hoje em dia? Os contadores de histórias que você elegeu. Você, aqui, somos nós, na parte que nos toca.
     Se nada for feito, teremos que apelar, não para a previdência social estatal, mas para a Providência Divina e Espiritual, rezando para existir até o final da idade mínima para se aposentar ou até que o número de contribuições mínimas sejam atingidas para o exercício de benefícios previdenciários. 
     Se prever é prover, e, se a previdência não providencia a provisão justa de valores para o devir, prevejamos nossa sorte para nos prover de atitudes em benefício de nossa saúde mental. Ao menos dela.
    

sábado, 3 de dezembro de 2016

REPÚBLICAS SOBREPOSTAS NO BRASIL?

     Se existe vida após a morte, Montesquieu deve estar num spa psicoterápico para refletir sobre as consequências que sua clássica divisão estrutural de funções produziu. Principal articulador do sistema de freios e contrapesos operados, em maior ou menor grau, nas sociedades democráticas modernas, Montesquieu, alavancou a tese de que a república deveria operar de forma harmônica e independente sobre o tripé de suas mais essenciais funções, qual seja, a legislativa, a executiva e a jurisdicional.  Rousseau, cuja obra mais renomada é o Contrato Social, certamente tremula ululantemente na fila de emergência de algum departamento cósmico responsável pela operação de reencarnação dos seres, argumentando pela urgência no atendimento especial que o seu caso requer: a morte de seu tratado. Vale lembrar que no Contrato Social, a expressão "SOBERANO" ali utilizada, conforme ele próprio explica, é dirigida ao povo (ou a sociedade). Que falta faz ao país a disciplina de Organização Social e Política Brasileira (OSPB). O motivo de sua criação era proporcionar aos estudantes o conhecimento do sistema assentado no conceito de Estado Democrático de Direito, hoje, tão dilapidado por motivações espúrias.  Montesquieu e Rosseau, acreditem, operam em seus tratados um sistema propositivo muito mais complexo do isso. Merecem algum dia serem propalados nos bancos escolares.  Mas nosso espaço é,  conforme sempre salientamos, voltado para o público interessado, não necessariamente aquele especializado.
     Em conta da repercussão gerada com a manobra produzida pelo legislativo nacional ao introduzir no sistema deliberativo, de supetão, um projeto de lei que regula o abuso de autoridade, a Genetriz Estatal não poderia se omitir em opinar, dado o seu desígnio existencial de levar ao leitor, uma reflexão acerca da estrutura do Estado, hoje, anêmica de racionalidade, deficiente na instrumentalização de sua função primordial - instrumentalizar a promoção do bem comum - e, após os últimos movimentos da república, moribunda mesmo. 
     Após assistir a sessão temática do Senado para debater sobre o projeto de lei cuja matéria trata do tema "abuso de autoridade", incorporado no processo legislativo, mais do que no calar da noite, mas no calar da madrugada do outro dia (calando-nos as expectativas), ouvindo os principais convidados a expor os seus respectivos pontos de vista, dentre os quais , o magistrado Sérgio Moro, o Ministro Gilmar Mendes, o Senador Roberto Requião (relator no projeto), e algumas intervenções de parlamentares daquela casa, fomos convencidos de que, estabelecido o contraditório, os argumentos levados à tribuna revelaram que o produto final será deliberado sobre as bases medíocres tradicionalmente aceitas. Aqui se esgota a primeira parte da matéria: o tema do abuso de autoridade é relevante, urgente, complexo, e, qualquer atualização legislativa no sentido de aprimorar a relação de poder derivada do exercício de funções públicas e sua relação com a sociedade é bem vinda.
     O problema surge, e é um problema inclusive desenvolver a tese de sua existência, quando analisamos as circunstâncias nas quais o legislativo introduziu o projeto de lei sobre abuso de autoridade para "deliberação deliberada". O projeto tramita na Câmara dos Deputados desde a década passada. Sua tramitação, até então, já havia estabelecido uma espécie de união estável com as teias de aranha produzidas pelo tempos da inércia procedimental a que estava submetido, havendo até quem estivesse disposto a convertê-la em casamento, visando convalidar o regime de parcial comunhão de interesses entre o nada e o coisa alguma que, até então, vicejavam em sono profundo, na quinta dimensão do desdém legislativo. Segundo dizem os astrólogos, próximo de Urano.
     A preocupação de Sergio Moro centrou-se na criminalização da interpretação. Fez a defesa, ainda, da função policial ao criticar o texto constante do projeto que criminaliza o uso de algema, na forma em que se encontra redigido. É importante chamar a atenção: a função jurisdicional consiste exatamente na aplicação da lei e não há como aplicá-la sem, por óbvio, interpretá-la. O que se pretende salientar é que, se direta ou indiretamente retirarem do magistrado o poder de interpretar a lei  de acordo com o seu livre convencimento, não se está atacando apenas a chamada operação lava a jato, mas ao próprio pacto federativo. Explica-se: a Constituição Federal retrata a estrutura da República de forma a manter independentes e agindo em sistema de harmonia, as funções estatais de legislar, administrar e julgar. Se um dos poderes, a pretexto de regular determinada matéria, impinge, ainda que sutilmente, restrições que impilam ao outro o menor obstáculo a sua liberdade funcional, o resultado será sempre uma infração ao pacto republicano. No caso sob apreço, o texto inserto no projeto é, digamos, natimorto. É evidente que o chamado crime hermenêutico não pode prosperar.
     Isso não implica em reconhecer que muitas das decisões sejam tão estapafúrdias que podem mesmo ser, do ponto de vista jurídico, reputadas como "ato inexistente", sobretudo quando não fundamentadas (ou muito mal fundamentadas). Para isso existem os recursos e os habeas corpus .
     Gilmar Mendes, em sua sustentação, apontou problemas afetos às pessoas pobres, desamparadas, noticiou a existência de presídios onde o juiz responsável pela execução da pena nunca havia visitado o presídio, etc., problemas que existem desde o descobrimento do Brasil à época das ordenações Manoelinas. Sugeriu que fossem incluídos os agentes do TCU (Tribunais de Conta da União) como latentes autores de abusos, dentre outras sugestões. Só não digrediu do porquê, se no país nunca se deu qualquer bola para abusos de autoridade, exatamente agora que a equipe da lava a jato está chegando próximo da nata política em vias de se transmutar em coalhada carcerária, a preocupação com os pobres, presos e necessitados veio à baila. Por quê?
     Repetimos: Todos os problemas levantados pelos interlocutores de fato existem e são notórios e uma norma que regule a limitação e o abuso de poder é de fato relevante no contexto do sistema implantado para regular agentes políticos e públicos. O que se critica aqui, é: se o projeto estava parado desde a década passada e, se mesmo gerando fungos pela espera de sua viabilização através do processo legislativo competente, jamais levou em consideração toda a sorte de abusos de autoridade praticados no país há séculos, porque ela passou, exatamente agora, a ganhar alguma relevância na percepção de nossos deputados e senadores da República? Porque as chamadas dez medidas contra a corrupção (que possui pontos discutíveis) tramitou de forma regular, com amplo debate público, e o projeto de lei que regula o abuso de autoridade, cujos pontos exigem ponderações delicadas e sutis, foi jogado no balaio circunstancial em que medidas imprescindíveis ao depuramento moral da administração pública já se encontravam em adiantada fase de processamento legislativo?
     A resposta é óbvia, indubitável, incontestável e insofismável: porque os interessados são os próprios acusados. Isso é de uma imoralidade sem adjetivos, pois não há palavra na gramática brasileira que possa traduzir o asco gerado por esse movimento político enquanto a nação dormia ou dormitava. Fica aqui registrada a sugestão para que se crie, no futuro, uma palavra que possa,  de forma complexiva, expressar o desejo profundo de que a própria sequência de DNA dessa classe degradante que governa a república jamais houvera sido desencadeada. Não nos surpreenderia que a análise de sua sequência desembocasse numa categoria qualquer de serpentes caiadas. Talvez a da espécie das jararacas.
     Interessa para o desenvolvimento dessa matéria, inicialmente ressaltar que "os pobres", "os desvalidos", "os menos privilegiados", novamente são utilizados para justificar essa casuística inserção na pauta de deliberação do Congresso. Essa categoria, a que chamaremos de "apartados sociais",  frutos de uma estratificação social consolidada no tempo, são mantidos apartados para servir ao velho discurso da preocupação com os mesmos, que por estarem apartados de qualquer possibilidade de compreender o sistema, em seu todo considerado, sem o saberem, retroalimentam-no elegendo exatamente quem os mantém a par de todas as considerações. Quem, pois a produz e quem a utiliza a seu bel prazer para o seu próprio interesse? Falamos da estratificação social consolidada no tempo.
     O Ministro Gilmar Mendes ao pedir a inclusão dos membros do TCU no contexto do projeto de lei aqui comentado, poderia estar a defender um interesse próprio, na medida em que o TCU fiscaliza a manipulação de recursos públicos e ele, como ex-Presidente do STF e presidente do TSE, está submetido a essa fiscalização? O que nos garante que no subsolo das sugestões apresentadas,  não dormita a intenção de alvejar eventual e futura decisão do TCU, quando analisar as contas apresentadas na sua gestão, em relação aos recursos por si administrados? Especulações que aqui empreendemos como mero exercício lógico O mesmo deveria fazer a sociedade nesse momento crucial da república. É que o texto já se refere à agentes da administração pública e chamou-nos a atenção esse preciosismo do ministro. Tratando-se de um professor de direito constitucional, não deve ter sido à toa. É tão razoável ponderar sobre tais possibilidades, que ao aludir a questão dos presídios abandonados e totalmente ignorados por juízes de execução penal (ou Corregedores), para fundamentar a necessidade de uma lei que contenha abusos de autoridade, olvidou o Ministro que esses estabelecimentos penais (na esfera criminal) sempre estiveram à margem do que preconiza a lei de execuções penais e estão assim, exatamente porque o poder judiciário prefere muitas das vezes empenhar recursos para que desembargadores e magistrados realizem cursos no exterior do que aportá-los no aprimoramento do sistema de fiscalização dos estabelecimentos penais. Todos sabem que falta recursos, que há insegurança, etc., mas, ninguém, na comissão temática, levantou esta questão. É porque o poder não  está preocupado com os "apartados sociais", mas apenas e somente consigo próprio. 
     A  remuneração de muitos magistrados, membros do ministério público, dos próprios tribunais de contas, é muito superior a do teto estabelecido na Constituição. Isso é tratado como um probleminha a ser resolvido, mas, na visão da Genetriz, é um desvirtuamento do poder que merece apuração criminal (ou mesmo crime de responsabilidade). Quem não cumpre a Constituição poderia julgar quem não cumpre a Constituição? Entendemos que não. Quem não cumpre a Constituição poderia perseguir quem não cumpre a lei? Entendemos que não. Mas quem poderia tomar alguma providência se (i) o Ministério Público não fiscaliza quem de seus procuradores/procuradores percebe remuneração acima do teto, (ii) os tribunais, no mesmo sentido, são silentes quanto a essa circunstância em relação aos seus juízes e servidores, e (iii) o legislativo, para não ser repetitivo, nada faz de diferente em relação aqueles outros poderes, incluído aí o poder executivo, inclusive suscitar a existência de crime de responsabilidade. O pacto federativo, nesses moldes, não convalida uma república, mas um clube especial de troca de favores. O mais baixo meretrício pode ser considerado virtuosíssimo se comparado ao que ocorre no país. 
     Os senadores que parlamentaram no púlpito do Senado utilizaram-se de argumentos, quase todos validáveis. Mas vale para eles o mesmo raciocínio. Se são investigados, sua argumentação validada pela lógica da ideia que traduzem é dilapidada pela má-fé de seu propósito. É casuísta na pior acepção do termo.
     Recentemente a mídia retransmitiu uma parte da transmissão de julgamentos do STF em que o Ministro Gilmar Mendes perfaz uma crítica aos magistrados que se manifestaram à porta do STF, registrando que muitos poderiam estar percebendo remuneração acima do teto, o que é verdade, mas estaria ele preocupado com a ética? Minha intuição diz que não. Macular a imagem da magistratura é uma forma indireta de atingir Sérgio Moro e toda a equipe da lava a jato. A presidente do STF, Ministra Carmem Lúcia, externou que a intenção dos magistrados extrapola a questão do salário, mas, questionada por Gilmar Mendes sobre os mesmos, afirmou que "aquela presidência também não aprova salários acima do teto". Queremos chamar a atenção dos leitores não para as especificidades de cada fato, conforme o interpretamos, mas para a generalidade de se contexto, onde tanto as remunerações percebidas acima do teto (qualquer que seja o cargo) quanto a abdicação de soluções concretas coexistem em meio a discursos para a plateia. Dirão eles que não sabiam?
     Um impedimento de uma Presidente da República (e seu vice), através uma chapa eleita com recursos de propina da, dentre outras, Petrobras, é autorizado por uma Câmara de Deputados e processado e julgado por um Senado, onde muitos de seus integrantes também são acusados pelo mesmo esquema. A presidente é condenada mas não se lhe cominam a pena de perdas dos direitos políticos, como determina a Constituição Federal, de forma expressa. Por uma determinação do presidente do STF (após um acordão com membros do Senado),  a Constituição é novamente violada. Deu o presidente do órgão de cúpula do judiciário, uma interpretação tão descabida ao texto constitucional que poderia mesmo ser reputada abusiva, para adjetivar delicadamente o que para nós constituiu, na verdade, crime de responsabilidade patente, opinião que faz demonstrar como o debate sobre o crime hermenêutico é sutil e complexo e não pode ser regulado de supetão, sobretudo quando a interpretação é subscrita pelo presidente da corte maior, num contexto onde a parte legitimada para deliberar sobre a existência de crime de responsabilidade foi a mesma que acatou a decisão.
     A decisão, também,  foi acatada pela própria autora do impeachment que sustentou a tese do crime de responsabilidade praticado pela presidente Dilma, exposta pela mídia como o arauto da integridade, com uma naturalidade espantosa, dando entrevistas no sentido de que, ao invés de sentar o pau na fraude perpetrada no julgamento, em relação ao tema da perda dos poderes políticos, ao contrário, sustentou o cabimento da interpretação dada pelo presidente do STF informando que há posição doutrinária nesse sentido. A única posição nesse sentido que nos ocorreu foi  a posição de ajoelhada pelas circunstâncias. Animais de cascos também mantém-se sobre quatro patas, o que não deixa de ser uma posição. Tudo são, mesmo, posições a que se pode comentar, ainda que não doutrinariamente.
     Vale lembrar que o atual Presidente da República foi eleito na mesma chapa para a qual foram desviados recursos da Petrobras. Ele não sabia. Eles não sabiam. Você sabia que o sabiá sabia assobiar? Quem sabe alguém saiba de algo. O sabiá que se dane.
    A pressão entre poderes não tem outra causa senão o levantamento de informações obtidas pela operação lava a jato e outras operações menos conhecidas. Se você me condenar eu mando fazer uma auditoria para saber se você ganha mais do que deveria ganhar. Se você me entregar, eu lhe entrego também. O tempo que vou levar para promover as decisões judiciais que me cabem e como irei decidir dependerá do que você irá fazer no Senado ou na Câmara e, vice-versa, e vice-versa, e vice-versa, numa espécie de dízima periódica direta e reversa que pode mudar de sentido a qualquer momento.
     Há no país duas repúblicas operando. A república das elites do Brasil e a república pro forma estabelecida para a sociedade em geral, em especial aquela que não mantém qualquer vínculo com o Estado. A primeira das repúblicas, está sendo devastada pela operação lava a jato. Suas vísceras estão sendo expostas e, conseguindo-se rasgá-la por inteiro, morrerá, Oxalá assim aconteça.  A segunda das repúblicas está despertando enquanto tal. Devagar, é verdade, mas despertando. Se acordada fosse, por um despertador nuclear,  cujo som produzisse a realidade, uma revolução se imporia. Uma revolução de verdades. 
     A república falsificada será exposta pela perícia popular. A sociedade demonstrará que ela se sobrepôs ilicitamente sobre a república de verdade. A democracia, após séculos, dá sinais de vida. Eu a sinto desejando o parto ansiado pelos brasileiros há séculos. A república de verdade quer evidenciar-se enquanto possível. Nós já sentimos as primeiras  contrações do parto porvir. Cuidemos da gestação dessa república que deseja ardorosamente nascer. Escute o seu coração! Diga não ao aborto das possibilidades.    
     Enquanto ex-presidentes expõe a sua inferioridade moral argumentando que a lava a jato não tem consciência dos prejuízos que está causando à economia do Brasil, um grupo de profissionais labora no sentido de facilitar o parto de onde nascerá a republica de verdade, formada de apartados sociais, outrora só presente nos discursos falaciosos dos integrantes da república de mentira.
      O líquido amniótico da nação que nascerá, lavará a alma da nação, sedenta pelo verdadeiro nascimento de república de verdade. Ela nascerá na república de Curitiba, uma espécie de república responsável pela fase de transição entre a morte da primeira e o nascimento da segunda. Os espelhos estão sendo quebrados. Espelhos tortos, suas imagens reais ou virtuais, o jogo de focos, terá fim. Veremos o que há para ser visto tal qual se apresentar aos nossos olhos.
       Montesquieu e Rousseau: descansem em paz. 
     PS: Acabamos de ouvir a notícia de que a operação lava a jato recebeu o prêmio da organização transparência internacional. O mundo premia o trabalho que vem sendo feito por aqui. Nós, os apartados sociais, os que não tem convívios maiores com o poder, não podemos fazer outra coisa que não o integral apoio aos agentes do parto porvir. Cirurgiões da novidade. Parabéns lava a jato e toda a sua equipe, apareçam ou não nas mídias ou redes sociais. 

sexta-feira, 2 de setembro de 2016

UMA INTERPRETAÇÃO À LUZ DA FÁBULA DO IMPEDIMENTO E DA RESPONSABILIDADE. OU: O COELHO DOIDO

"Parágrafo único. Nos casos previstos nos incisos I e II, funcionará como Presidente o do Supremo Tribunal Federal, limitando-se a condenação, que somente será proferida por dois terços dos votos do Senado Federal, à perda do cargo, com inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública, sem prejuízo das demais sanções judiciais cabíveis."



      O texto acima refere-se ao parágrafo único do artigo 52 da Constituição da República Federativa do Brasil. A matéria regulada pelo Texto Constitucional diz respeito à atribuição de competências privativas para o julgamento de agentes políticos nos crimes de responsabilidade, competência esta deferida pela Carta Maior ao Senado Federal. Os incisos I e II referenciados no parágrafo supra destacado refere-se, respectivamente, aos legitimados passivos Presidente da República (e outros) e Ministros do Supremo Tribunal Federal (e outros). Aqui, tendo em conta o fatídico episódio ocorrido no julgamento da Presidente da República e o chamado "fatiamento" da decisão,  sob as barbas do Presidente do Supremo Tribunal Federal, através de um processo operado  sob a sua presidência, fixaremos nosso comentário na figura do chefe do executivo, não significando que o circo onde representam-se os poderes não estivesse armado, com todos os seus personagens, suas máscaras e alegorias, para o deleite e a felicidade de todos.
     É preciso, antes de mais nada, destacar que o ambiente onde se operou o julgamento reuniu todos os poderes, destacados por se referirem à cúpula do poder, nas funções executiva, legislativa e jurisdicional.
     Voltemos ao parágrafo único do artigo 52 constitucional, e, em sua análise, lançamos um desafio: ao ler o texto da norma ali contida, você, cidadão alfabetizado, qualquer que seja o seu nível de escolaridade, consegue inferir outra interpretação distinta daquela estabelecida pelo legislador constituinte senão aquela cujo resultado aponta para a lógica de que a inabilitação do condenado por crime de responsabilidade é a consequência inevitável de sua condenação à perda do cargo? 
     Se você estiver cabreiro diante da indagação que propomos em forma de desafio, imaginando, que por não conhecer o sistema legal, na condição de jurista, advogado, bacharel em direito, dentre outros, possa haver alguma explicação de cunho doutrinário e técnico capaz de, dado o seu desconhecimento do direito, especialmente o direito constitucional, ocultar conceitos dos quais você não tem conhecimento e que isso, eventualmente, possa ser obstáculo para uma opinião mais acurada sobre o tema, jogue sua dúvida no lixo, pegue o seu receio e o destaque, ainda que temporariamente, no armário das elucubrações naturais que se poderia empreender sobre o tema, feche a porta e tranque-as, pois nós lhe asseguramos serem desnecessárias para enfrentar o desafio proposto.
     Ao limitar o texto contido nesse parágrafo único, a perda do cargo, com inabilitação, por oito anos, apegando-se apenas na leitura do texto, é possível interpretar em outro sentido senão o de que, a sequela inexorável da perda do cargo é a inabilitação política, diante da expressão "com inabilitação", inserida entre vírgulas, utilizada como oração explicativa adjetiva (jamais como aposto), qual seja, que "a perda do cargo" será evidenciada necessariamente com "inabilitação", seguida, ainda, de mais uma oração explicativa adjetiva, qual seja, "por oito anos". 
     Ainda que não se conheça muito de análise sintática, como é o nosso caso, aqui aludida apenas para fazer notar que os textos são interpretados, de forma literal e lógica, no contexto de sua alocação na estrutura da frase, se expuséssemo-la a um adolescente que frequentasse o ensino médio, ao interpretá-la,  não temos a menor dúvida de que seria introduzida no processo mental desse adolescente a ideia de que a inabilitação por oito anos traduziria a sequência lógica que o texto teria querido fazer referir, caso houvesse a condenação de alguém pelo crime de responsabilidade, na forma em que a norma (o texto) está estruturado. 
      A Genetriz Estatal quer chamar a atenção do brasileiro para um aspecto desse episódio político de suma importância. O óbvio está sendo transtornado abruptamente pelo circo armado em torno desse julgamento. Nada autoriza a interpretação de que a decisão  possa ser cindida (ou fatiada, como se tem dito). Embora o texto seja claro, por um certo senso de prudência, as pessoas estão acompanhando os "juristas" e "especialistas" falarem isso ou aquilo sobre o tema, pretendendo tirar leite de pedras e, o que é pior, alimentando o debate do tema sob o signo da desconstrução do óbvio, o que, por óbvio (o óbvio verdadeiro), não se pode admitir. Não se interpreta. Constrói-se gradativamente uma fábula. A mensagem pretendida? Não olhemos mais para o retrovisor da história. Pacificar é preciso (lição repassada). A lição de moral desse estilo literário na atual versão dos fatos: conhecerás a paz e a mentira vos libertará. Paz com maionese, pão e mortadela exegética.
     Repudia-se veementemente o procedimento adotado pelo Senado, enquanto órgão julgador (nesse caso) e, mais do que veementemente, pela fraude perpetrada pelo presidente do supremo tribunal federal (em minúsculas, ainda, pois a fábula prossegue na nossa historinha) , nesse país chamado brasil (com pedido de perdão pela insistência, em relação ao uso de minúsculas), no processo de nossa democracia (se pudéssemos criar uma minúscula de uma minúscula, escreveríamos com ela). 
     Nessa fábula, e, é claro, estamos diante de uma fábula, pois num país de verdade isso jamais aconteceria, há personagens interessantes, como aquela do lobo que se esconde atrás da pele do cordeiro para devorar o rebanho inteiro.
     Ressaltado que o presidente do supremo tribunal federal (vide nota sobre minúsculas) presidiu o processo e que esse órgão (a partir de agora, para não ser redundante, avisamos que as minúsculas predominarão nesse texto) é o responsável pelo controle da constitucionalidade no estado brasileiro, num julgamento que reuniu a cúpula do legislativo e do executivo, cumpre-nos agora descolorir uma personagem que tomou conta da mídia nos últimos tempos, na condição de arauto da expulsão dos "bolivarianos" , defensora da ética e contundente protetora das gerações futuras, empreendendo um "tenaz" combate contra a corrupção,  que invocou Deus (aqui abre-se uma exceção, pois minúsculas são inadmissíveis) em seus discursos, uma espécie de Joana D'arc da legalidade, bramindo como leoa justiceira em defesa do povo brasileiro.
      Numa vídeo divulgado pelo youtube, deparei-me com uma entrevista da da Dra. Janaína  logo após o término da sessão legislativa histórica, onde, em síntese, já com uma expressão muito diferente da costumeiramente construída durante esse laborioso processo, ressalta que o fatiamento da decisão é "muito debatida pela doutrina" e que, embora tivesse fundamentado sua defesa nos conceitos do jurista Paulo Brossard, a tese que logrou êxito no quesito "cindibilidade da decisão", foi, vejam só, a do jurista Michel Temer. Ops! Sim. O presidente que na mesma data foi empossado em caráter definitivo (definitivo no Brasil quer dizer "definitivo em tese", uma vez que ações serão perpetradas por ambos os personagens, os da acusação e os da defesa - o que é no mínimo curioso). 
     Segundo Joana D'arc, digo, a Dra. Janaína, e aqui eu peço sua atenção, aliás, sua mais profunda atenção, ela entende que não cabe ao supremo apreciar o mérito da decisão. Tanto a defesa não pode recorrer contra a decisão que reconhece o cometimento de crime de responsabilidade, quanto a acusação não pode recorrer  da decisão (i) que determinou o fatiamento das decisões (houve crime? Deve ser inabilitada?) e "julgou" (uso a minúscula da minúscula aqui...faz de conta) que a presidenta impedida não será inabilitada.
     O circo colorido das conjecturas circula no caleidoscópio do poder, girando em círculos e provocando formas variadas de enxergar coisas, como se o objeto e sua imagem estivesse rodopiando entre pedrinhas coloridas e brilhantes (pedacinhos de coisas) e um espelho multifocal (admite imagens reais e virtuais ao mesmo tempo).
     Nesse exato momento, sentimo-nos traídos. Até onde pode chegar a inescrupulosidade intelectual  de uma pessoa. Ao fazer apologia no sentido de que "nem defesa e nem acusação podem recorrer", seguida da expressão adocicada muito utilizada pela doutrina "no meu entendimento", nada mais faz do que impingir no imaginário da população brasileira, valendo-se da imagem icônica construída ao longo do processo, a impressão de que "muito provavelmente deve estar falando a verdade".
     Verdade seja dita. Uma falácia se consolida no cenário político brasileiro.
     Apenas para argumentar, imaginemos que, na nossa fábula, as regras de interpretação operassem com a lógica de Alice, claro, no país das maravilhas. O coelho maluco, na hora do chá, repetiria insistentemente que a rainha louca foi condenada. As cartas, marcadas ou não, dançariam no centro do pátio do planalto em comemoração, misturando-se ao som alegre sob o ritmo de um trotto, celebrando o ocorrido. Cartas de ouros, por assim dizer.
     O coelho maluco berrando aos quatro cantos, foi crime, foi crime, foi crime. Alice, após deglutir um pedaço de bolo de cogumelo mágico, muito louca, foi ficando grande, maior e maior, magicamente maior. Qual foi a pena? Pergunta um incauto. Nenhuma, nenhuma, nenhuma, responde o coelho sem tirar os olhos de seu relógio. Alice, sem entender o porquê, vê a sua estatura diminuindo, ficando cada vez menor, menor e menor. 
     Um crime de responsabilidade cometido pelo chefe do executivo não recebe qualquer punição, ainda que política. Faz sentido?
     Mas Joana D'arc pensa que sim. Quem ousaria refutar a tese heroica de nossa personagem? Nesse contexto, ninguém. Ops! Nós. 
     Ao defender a tese que a própria acusação não pode recorrer dessa esdrúxula decisão, ela, a própria patrocinadora do pedido de impedimento da presidente, está , em linhas gerais, fatiando uma consequência imposta pelo Texto Constitucional (o verdadeiro, por isso em maiúscula) digamos, "infatiável". Depois de muito recurso público despendido com esse processo, pois não há almoço grátis, gratificações extraordinárias devem ter sido pagas aos "nobres" representantes do povo", ao presidente do supremo (super minúscula dada a fábula) e todos os artistas do teatro mambembe ali operado, o "toma lá, dá cá" restou evidente. 
     A criminosa, por delito de responsabilidade, não recebe uma pena. A autora da acusação ratifica esse entendimento. Tudo bem, diz o coelho maluco, os membros do poder judiciário também,  não raras vezes, são aposentados quando cometem disparates criminológicos.  Certamente será albergada em algum cargo público para fugir da 13ª Vara Criminal de Curitiba, a boa e velha República de Curitiba (maiúsculas maiúsculas). 
     A praça dos três poderes erguerão três taças de champagne. Eu, tu e eles, personagens do empoderamento formal de uma republiqueta da América do Sul, que aos olhos do povo parecem se referir aos poderes legislativo, judiciário e executivo, o triângulo de bermudas, misterioso espaço onde tudo desaparece misteriosamente, consolidam uma realidade deplorável, semelhante a mais deplorável ressaca advinda do mais deplorável porre que se possa haver experimentado na vida.
     O povo, continua bebendo o estranho líquido da garrafa colocada a sua frente, e, também, a frente de um estranho bolo etiquetado com a ordem : coma-me! Como Alice, fica grande e pequeno ao sabor dos ventos, sendo certo que a toca onde se viu ocultado da realidade é escura, muito escura e, por isso, ao permanecer nela, remanesce com suas pupilas constantemente dilatadas, enxergando tudo de forma embaçada, e, o que dá pena, comemorando mais um engodo a que foi submetido. 
     Um dos legitimados passivos que podem cometer crimes são os ministros do Supremo Tribunal Federal, inclusive e sobretudo o seu presidente, mas a qual Senado recorrer?
      Após a entrevista da Doutora Janaína, não temos dúvida: fomos novamente enganados. Mas a experiência é um tônico para infortúnios futuros, uma espécie de vacina naturalmente produzida pelo corpo de toda uma sociedade. Produz anticorpos poderosos e um dia essa doença, a mentira, será erradicada de nosso sistema. 
      Para nós, o parágrafo único do artigo 52 da Constituição Federal, deve ser emendado. O que não se emenda nesse país, afinal de contas? Sugere-se o seguinte texto:

"Par. único: Vão se danar acusados, acusadores e seus respectivos patronos". Vão se danar também todos os julgadores. Ficam ab-rogadas todas as disposições em contrário". 




   
     TODO PODER EMANA DO PODER E EM SEU NOME SERÁ EXERCIDO, POR MAIS DURA QUE POSSA PARECER A QUALQUER UM DO POVO ESSA BRUTAL REALIDADE. (EMENDA SUGERIDA PELOS PODERES).

     Link da reportagem da Dra. Janaína:  https://youtu.be/c1DVAhFbxBI