Fomos conduzidos ao ano de 2030 da era cristã. Ao abrirmos os olhos nos deparamos com pessoas trajando roupas semelhantes, cujo único traço distintivo estava representado por tarjas de identificação funcional. Todas servem ao Estado unitário popular do Brasil, instituído após a vitória da megalomania de Pedro, o grande Bó.
Iniciamos nossa peregrinação pelo tempo desejando conhecer um futuro provável, ansiosos por encarar o progresso de uma sociedade que, há tempos atrás, imaginava-se muito, mas muito melhor no futuro.
Já nos primeiros passos fomos abordados por um agente do povo, ele, seu uniforme e sua tarja funcional.
O povo, vimos numa holografia tridimensional que circulava sobre todas as cabeças, emanada de um sofisticado dispositivo tecnológico de propaganda, era o senhor de seu próprio poder. O povo, mobilizando seus lábios, indagou acerca de nossa licença para estar ali. Não sabíamos o que responder, O contraste entre os tempos gerou uma espécie de labirintite circunstancial associada a um certo receio de errar na resposta, talvez, por estar perdido no centro daquela pergunta.
No susto, respondemos que pretendíamos conhecer nosso futuro (ou o de nossos descendentes, se fosse mais barato).
Com uma leitora de código de barras na mão, o povo solicitou o cartão de acesso ao centro de formatação de seres em formação (o CFSF). Sem saber o que dizer de plano, dissemos que o havíamos perdido, quando na verdade estávamos era perdidos.
Recebemos uma multa por desacato ao cuidado das coisas do povo. Valor: mil de suas vontades.
A holográfica recordação de que o povo era senhor de seu próprio poder rodeava nossos já desesperados circuitos, já menos cerebrais do que mnemônicos. Pessoas igualmente vestidas gozavam com igualdade do poder com o qual foram investidas. Os que tinham mais poder tinham tarjas mais pomposas, mas, como ouvíamos pelos arredores, quanto maior o poder, maior a responsabilidade em garantir o poder ao povo. Para sermos francos, pairou a dúvida sobre o que houvéramos ouvido. Não sabíamos se "poder ao povo" ou "poder do povo". A acústica daquele local não nos favorecia muito. Não entendemos a proposição, mas para quem sequer sabia onde estava, contentamo-nos em poder ouvir. Poder...ouvir.
Vimos o povo fabricando chips para inserir verdades nos corpos infantis de seus futuros integrantes.Particularmente no cérebro, pois o coração do povo parecia inacessível à quaisquer espécies de inovação . Todo o controle era necessário e produzido em série. Calculava-se altura, temperatura, taxa de glicemia e o tempo provável de ocorrências diagnosticadas por poderosos computadores.
Havia um depósito no escuro de uma sala escondida, em cuja porta, nova e iluminada holografia se evidenciava: Proibida a entrada a estranhos. Só quem o povo autorizava poderia ingressar naquele ambiente popular.Cadáveres de possibilidades frustradas se empilhavam para serem utilizados em poderosos testes de consistência. Eram desobedientes e, portanto, ignóbeis, dizia o povo. Precisamos estudá-los. A voz do povo era a voz de Deus (seguramos nosso riso). Um povo desobediente e ignóbil, como nos fora explicitado, sempre morre pela causa do povo. Os órgãos eram doados.
Bebês eram preparados para servir ao povo. A cada dez segundos, antes do primeiro mês de vida, aprendiam a venerá-lo. Obedeça, obedeça, obedeça ao povo, pois todo poder dele é emanado.
O grande Bó, figura mítica e presente no imaginário do povo desde o estado nascituro, ele próprio o maior, de tanto povo ao redor de tudo, a tudo decidia. O povo decidia e era obedecido pelo povo: quando nascer, o que pensar, o que comer, o que beber, o que ler, como servir ao povo, como servir ao povo e como servir ao povo. Pedro, o grande Bó, sempre acreditou no povo. Por isso sacrificou sua vida no intuito de representá-lo. Detestava desacatos à sua autoridade e como ela emanava do povo, desacatá-lo era desacatar ao povo. Ninguém duvidava disso!
Os centros educacionais, coordenados por um ministério específico, decidiam o que era educação e como explicá-la, em sua acepção popular. Um órgão do povo, cheio de povo, traçava a meta a ser atingida pelo povo. Traçava traços de indefinidas e estranhas possibilidades, como as letras traçadas por seus universitários em suas universidades populares. Aboliu-se toda a forma de acento para não complicar o processo. Assentos escolares também foram abolidos, assim como escolas e prédios escolares. Sobre a grama se alimentava o povo de conhecimento. Ao ar livre. O ar era de fato livre, podia ir e vir sem qualquer objeção estatal. Não entendemos nada, mas tudo parecia fazer sentido a todos. O importante é que havia algo escrito em algum lugar.
O povo era livre e podia definir o que quisesse da forma como quisesse desde que em benefício de si. Pedro, o grande Bó, era muito benevolente nesse particular aspecto. Tanto quem não sabia nada quanto quem sabia tudo sabia demais. Uns sabiam que não sabiam enquanto outros sabiam o que podiam saber, portanto, a sabedoria do povo era incontestável . Pedro, o sábio e grande Bó, sabia de tudo. As estatísticas confirmavam isso tudo. Jamais mentiam e o povo sabia disso.
Não havia nem ricos nem pobres, nem proprietários, nem expropriados, nem patrões nem empregados, nem muito nem pouco, nem iguais nem desiguais, pois essas contradições haviam sido superadas há mais de uma década, quando ainda se cometia o desatino de pensar por si mesmo (um grande absurdo local), já que Pedro, o grande Bó, havia libertado todo o povo desse pesado e degradante fardo, período felizmente superado, dizia o mesmo povo pela voz do grande Bó. Ninguém era dono nem de nada nem de tudo, pois tudo e nada eram conceitos alijados da nova gramática, abandonados pelo desuso.
Desesperados, sem licença para desaparecermos e sem recursos para pagar a taxa correlata, desmaiamos, se é que não morremos para esse tempo.
Sem saber nem como e nem o porquê, conseguíramos retornar ao nosso tempo e vimo-lo à nossa frente. Pesava-nos tê-lo à disposição. Pesadelo. O peso do elo que nos vincula, pelas nossas ações, ao futuro de nossas considerações. O tempo nos havia trazido de volta sem imposição tributária de qualquer espécie. Um Ufa e um sentimento de alívio nos acometeu. Acordáramos.
Já com os olhos abertos notamos que uma senhora passava do outro lado da rua. Há o outro lado, pensamos. Carregava um bebê no colo que chorava. Lembrei do povo no futuro. Aproximei-me e indaguei o nome da criança. Pedro, respondeu-me a simpática senhora. O grande Bó? - perguntei. Aquela mãe, imaginando tratar-se de um gracejo, devolveu-me a pergunta: como? Desculpa, respondi-lhe em desconcertado tom.
Ao final do dia recordamo-nos da criança no colo de sua mãe e o que havia do outro lado da rua, no tempo de nossas considerações. Nada de chips controlando o volume ou a hora de chorar. Bó, nem tão grande assim, era o personagem de um peso que nos açodou o sonho. Felizmente despertamos. Restou-nos pensar em Pedro, menos Bó do que povo, no colo de sua mãe e no outro lado da rua.
Caminhamos em direção de nossa zona eleitoral para votarmos. Era dia de eleição. Um grupo da situação gritava que o povo, unido, jamais seria vencido. O da oposição gritava as mesmas palavras de ordem, mas por outros motivos. Trememos. Pensamos em Pedro, o Pedrinho, tanto quanto nos braços de sua mãe. Nós só conseguíamos pensar na palavra liberdade. A que permitia que ambos os militantes gritassem a mesma coisa por motivos diferentes.
Pensamos (costume de época): chora Pedrinho! Limpa o seu pulmão, exercita o seu protesto num tempo de várias considerações e possibilidades. Chora Pedrinho, pois sua mãe sabe que quem não chora não mama, conhecimento transferido pela tradição ao longo dos tempos.
Uma chupeta poderia calar Pedrinho, pensamos. Pelo menos durante algum tempo. Chupetas servem para enganar o senso de realidade de bebês, continuamos pensando. Ríamos do que continuávamos a pensar. Ríamos porque Pedro, o grande Bó, governante do povo do futuro, ainda não havia nascido. Sua criação e nascimento dependiam de nós. Ríamos porque Pedro, o grande Bó, em estágio de latente possibilidade existencial, ainda não havia nos livrado do pesado encargo de pensar por nós mesmos.
Pensamos em Pedrinho nos braços de sua mãe...esquecendo-nos de votar. As urnas foram lacradas.
Elegemos nos perdoar, pois a raiz etimológica da palavra "perdoar" conduz a ideia de "soltar o que faz mal". Quando soubemos que a palavra pecar, em sua acepção etimológica, significava "errar o alvo", não tivemos a menor dúvida em liberarmo-nos da nossa porção desastrada, soltando-a livremente por aí, para que se perdesse em si mesma, até quem sabe, sumir. Redimimo-nos de nosso pecado. Onde está o nosso alvo?
Elegemos Pedrinho como futuro candidato às nossas aspirações. Choramos e mamamos nossa liberdade como quem suga a liberdade do fundo de sua própria alma. Pedrinho representa melhor o futuro de nossa condição humana.
Quem não chora não mama, conhecimento transmitido no tempo pela tradição dos homens, lição retransmitida por um bebê e seu desejo: o de poder livremente desejar o que bem lhe aprouver. É deles todo e qualquer reino, porque na terra estão ocultados todos os céus das possibilidades futuras. Assim seja! Vinde a nós todos os Pedrinhos.
A chupeta caíra no chão. Pedrinho a jogara bruscamente ali. Resolutamente.
Na trama do tempo, Pedro, o grande Bó, desapareceu na escuridão do improvável, provavelmente porque ainda podemos, no presente, escolher nos eleger livres. Nós, Pedrinhos de ontem.
Pedrinho venceu. O grande Bó, figura mítica de um povo, foi deletado por uma opção. Nem pela tecla "em branco", nem pela tecla "anular". Muito menos pela tecla "votar". Mas pela tecla "pensar".
Pensamos que isso basta!
vários partidos insinuavam o seu candidatoaaaaaaaaaaa